IDENTIFICAÇÃO MASCULINA E SUAS ARTICULAÇÕES COM O RECALCAMENTO. o processo de constituição do psiquismo. A discussão será feita à luz das idéias
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- Clara Fonseca Cerveira
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1 IDENTIFICAÇÃO MASCULINA E SUAS ARTICULAÇÕES COM O RECALCAMENTO Cristiana de Amorim Mazzini 1 O presente trabalho discorrerá sobre a identificação masculina ocorrida durante o processo de constituição do psiquismo. A discussão será feita à luz das idéias apresentadas no capítulo Em busca de uma metapsicologia à altura das psicoses do livro O problema da identificação em Freud: recalcamento da identificação feminina primária, de Paulo César Ribeiro, autor que embasa seu pensamento na teoria laplancheana, fazendo com ela uma interlocução crítica. A teoria de Laplanche preconiza a importância do adulto como implantador de mensagens enigmáticas no corpo da criança. De acordo com a teoria tradutiva do recalcamento, o inconsciente é formado pelos restos do processo de tradução das mensagens enigmáticas que é empreendido pela criança. A divisão da tópica psíquica acontece no momento do recalcamento originário, que delimita o inconsciente e anuncia a formação de um eu-instância ainda precário. Se anteriormente ao recalcamento originário o corpo da criança não era percebido como um corpo coeso, uma vez que não havia recursos simbólicos para a configuração de tal representação, o desenvolvimento de ferramentas simbólicas pelas primeiras traduções dão possibilidade de uma percepção, ainda que primitiva, da coesão desse corpo. Essa percepção equivale ao que Freud denominou de nova ação psíquica e corresponde ao surgimento do eu-instância, que coincide com o momento em que o recalcamento originário acontece. 1 Mestranda em Teoria Psicanalítica pela UFMG e pesquisadora do Projeto CAVAS.
2 Embasando-se em alguns conceitos desenvolvidos por Jacques Andre (1995 apud Ribeiro, 200o) em seu livro As origens femininas da sexualidade - e distanciando de alguns deles quando julga necessário -, Ribeiro descreve o caráter de feminilidade presente nos conteúdos que foram submetidos ao recalcamento originário. Esse caráter é delineado pelo recalcamento secundário, que além de ter uma função de consolidação do recalcamento originário, estabelece as bases sexuais e sexuadas do conflito psíquico. Além de participar da formação da identidade de gênero e da escolha do objeto sexual, o recalcamento secundário delinea as experiências recalcadas originalmente como femininas, marcando a passagem de uma posição de ser-invadido originário para serpenetrado feminino. Vejamos como isso ocorre. O recalcamento secundário, assim como o originário, se faz em dois tempos e também sofre a incidência do efeito de a posteriori. Se o corpo fragmentado é submetido ao trabalho do recalcamento originário imediatamente após a sua percepção como tal, o recalcamento secundário sela este trabalho configurando essas experiências originalmente recalcadas como femininas, ou seja, tornando-as sexuais. Durante o primeiro tempo do recalcamento secundário, que corresponde ao recalcamento da identificação feminina primária e é anterior à descoberta da diferença anatômica entre os sexos, a criança moldada pela sexualidade inconciente da mãe vive com ela experiências nas quais penetrar e ser penetrado, ter e ser objeto não se caracterizam como pares de opostos, mas como vivências homogêneas. Apesar de já haver um eu corporal com alguma representação no aparelho psíquico, a distinção entre as sensações que a criança causa na mãe e as que a mãe produz nela ainda não estão nitidamente delimitadas. O segundo tempo do recalcamento desta feminilidade, que coincide com a descoberta da diferença anatômica, rompe com a indiferenciação que vigorava anteriormente, caracterizando as vivências com a mãe como opositivas. É neste
3 momento que as experiências de penetração e passividade submetidas ao trabalho do recalcamento originário se caracterizam como vivências femininas primitivas, ou seja, se tornam a feminilidade primária recalcada. É a partir da circunscrição da vagina como região penetravél que as situações que aludem à passividade, penetração e masoquismo podem ser atribuídas à mulher e sejam, portanto, femininas. A posição de penetração generalizada encontra uma representação na posição feminina e é atraída pelo recalcado originário, que em articulação com o recalcamento secundário, promove a atração das experiências de ser penetrado, ou seja, da identificação feminina primária, para o inconsciente. A descoberta da diferença anatômica tem um impacto muito grande no processo de identificação de gênero e de escolha de objeto na medida em que exige um reposicionamento da criança em relação à percepção de gênero que ela possuía. A diferença de gêneros, que já era percebida pela criança, ganha um novo significado: se a percepção dos gêneros não implicava na atribuição de um pênis para os homens e de uma vagina para as mulheres antes descoberta da diferença anatômica, a incidência dela implica na diferenciação dos gêneros de acordo com o órgão genital que lhe é respectivo (as novas configurações de gênero exigem uma outra discussão que não será feita neste trabalho). Em contraposição à indistinção anatômica que vigorava anteriormente, a descoberta da diferença anatômica exige um posicionamento da criança em relação à qual gênero ela pertence e qual sexo ela possui. Se a imitação dos gestos da mãe, que desempenha um papel imprescindível na constituição do eu da criança, era vivida sem maiores complicações, ela passa a ser conflitiva após esta descoberta. A percepção de que a mãe pertence a um gênero correspondente ao seu órgão genital passa a entrar em conflito com a identificação à ela que vigorava anteirormente. O menino, que até então possuía traços de identificação
4 com a mãe, se vê obrigado a fazer duas importantes subtrações. A primeira faz com que ele abra mão dos traços identificatórios adquiridos da mãe. Se ela é uma mulher que possui uma vagina, a continuidade da identificação a ela implicaria na desconsideração da posse do pênis que caracteriza o gênero masculino. A outra subtração se relaciona ao próprio pênis: o menino acaba criando fantasias de castração. Tais fantasias se relacionam mais com um desejo de preservar a identificação com a mãe do que com a ameaça de castração propriamente dita. Elas surgem após a descoberta da diferença anatômica - ao contrário do que Freud acreditava - como respostas para lidar com o conflito do reconhecimento da incompletude que a descoberta provoca e apontam mais para um desejo de castração do que uma ameaça de castração. A negação de ter um pênis é vivenciada com intensa contradição pelo menino porque, ao mesmo tempo que atende às exigências narcísicas de identificação com a mãe, contraria uma outra exigência também narcísica, que é a preservação do órgão que além de proporcionar prazer é extremamente valorizado pela mãe. Conforme descreveu Greenson (1968, apud Ribeiro, 2000), o menino precisa se desidentificar da mãe para se tornar masculino e identificado ao pai. Sua identificação com ele só acontecerá se o desejo de preservar o pênis prevalecer sobre o desejo de não possuí-lo. Isso ocorre menos pelo prazer e pela excitação que o pênis provoca do que pela valorização e pela cota de amor que o menino recebe da mãe ao se identificar com o pai. A participação do pai como interditor da continuidade de identificação à mãe também desempenha um papel importante neste processo. Desta maneira, a interdição do pai que tem o desejo incestuoso pela mãe como alvo ocorre apenas num segundo momento; o que é primeiramente interditado por ele é a identificação feminina do menino.
5 Ao final desse processo, a aquisição de uma identidade de gênero surge como resultado do recalcamento secundário, que também consolida a divisão da tópica psíquica. A representação de totalidade corporal passa a ser uma representação de um corpo de homem (no caso dos meninos que se identificam como masculinos) e o corpo invadido originário, fruto do recalcamento originário, passa a ser um corpo feminino orificial que desencadeará reações defensivas contra a demanda de penetração. Os estados do eu relacionados à negação da diferença dos sexos e da feminilidade primária ficarão, a partir de então, mergulhados no inconsciente.
6 Referência bibliográfica Ribeiro, P. C. O problema da identificação em Freud: recalcamento da identificação feminina primária. São Paulo: Escuta, 2000.
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