O TEATRO ANCHIETANO ENQUANTO INSTRUMENTO PEDAGÓGICO: ANÁLISE DAS PEÇAS

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1 O TEATRO ANCHIETANO ENQUANTO INSTRUMENTO PEDAGÓGICO: ANÁLISE DAS PEÇAS INTRODUÇÃO RUCKSTADTER, Vanessa Campos Mariano. 1 ARNAUT DE TOLEDO, Cézar de Alencar. 2 Este texto se apresenta como resultado de um estudo feito no curso de Especialização em Pesquisa Educacional. Foi escrita uma monografia, que discute de forma mais global o teatro anchietano, cujas discussões foram sintetizadas para este artigo. 3 Nesta pesquisa estudamos a figura do padre José de Anchieta ( ), jesuíta que atuou de forma decisiva no início da formação da cultura brasileira no século XVI. Anchieta escreveu cartas, poemas, uma gramática da língua tupi e o objeto central deste texto: peças de teatro. As peças de Anchieta, que ao todo somam doze, foram reunidas pelo padre Armando Cardoso, estudioso da figura de Anchieta, no terceiro volume dedicado às obras completas de Anchieta (1977). Esta obra nos servirá de fonte para a análise dos textos teatrais, sempre pressupondo sua ligação com o contexto no qual foram escritos e encenados. Foi no período colonial, mais especificamente no século XVI, que o padre José de Anchieta produziu peças de teatro no Brasil. Nas mãos de Anchieta, o teatro assumiu um caráter catequético, que pode ser entendido também como pedagógico. O objetivo deste estudo é analisar de forma geral as peças teatrais escritas pelo jesuíta José de Anchieta e relacioná-las com o intuito catequético-pastoral de que estavam imbuídos os padres jesuítas no Brasil, bem como com o contexto no qual foram produzidas e apresentadas. A análise dos textos teatrais de José de Anchieta foi sustentada por dois eixos, sendo eles a contextualização histórica do período no qual as peças foram escritas e também representadas, além de uma breve biografia de Anchieta, e, por fim, a análise da estrutura das peças. Esta análise pressupôs sempre a ligação de suas obras teatrais com o projeto político- pedagógico da Companhia de Jesus. A análise partiu sempre das obras teatrais do próprio Anchieta, para depois buscar o apoio na contextualização, em estudiosos da figura e do pensamento de Anchieta, além de um suporte para discussão teórica sobre o teatro. Tal análise nos permitirá entender as relações que se deram no primeiro século de colonização do Brasil entre a ação dos jesuítas e o contexto indígena, bem como a primeira educação escolar em terras brasileiras.

2 2 DEFININDO CONCEITOS E TRAVANDO DEBATES: educação, atuação jesuítica no Brasil e início formação da cultura brasileira A ciência da História nos permite entender por meio da produção material dos homens as relações sociais temporalmente definidas. Estudar a história da educação nos permite entender a partir destas relações os processos educacionais em diferentes épocas históricas. Na apresentação do primeiro de três volumes do livro Histórias e memórias da Educação no Brasil, António Nóvoa (2004, p. 09) destaca o que se pode esperar de um historiador da educação: 4 Ao historiador da educação pede-se que junte os dois termos desta equação. Não há História da Educação sem a mobilização rigorosa dos instrumentos teóricos e metodológicos da investigação histórica. Mas também não há História da Educação sem um pensamento e um olhar específicos sobre a realidade educativa e pedagógica. A importância que podemos atribuir aos estudos das memórias da educação, segundo Stephanou e Bastos (2004, p.15), é a contribuição dada em exercitar nosso pensamento, nossas opções, tomadas de decisão sobre os agoras da educação de nosso tempo. Ainda mais na área de educação, onde a novidade sempre é aclamada, mesmo que esta novidade seja somente uma retomada de idéias e ações pedagógicas separadas da contemporaneidade muitas vezes por séculos. Adquire importância ter conhecimento do passado para entender as relações sociais existentes em nossa época, sobretudo no campo educacional, uma vez que educação é uma construção social. Quando se pensa em educação geralmente se pensa em uma forma de educação: a educação escolar. O uso do artigo definido uma é utilizado aqui não por acaso, uma vez que, conforme veremos, a escola é somente uma das instituições modernas onde se dá a aprendizagem. 5 No entanto, não foi esta a concepção que adotamos para nossa análise, apesar de muitas análises tomarem tal diretriz. Educação, de um ponto de vista muito mais amplo, deve ser estendida às diversas esferas da vida social. Várias são as instituições responsáveis pela educação. Podemos destacar entre elas: a família, a igreja, o convívio social, o ambiente de trabalho, entre tantas outras. Aqui então podemos fazer uma diferenciação entre educação, em seu sentido mais amplo, e educação escolar, somente uma dentre tantas outras esferas onde se dá o aprendizado. A educação está inserida na sociedade e conforme a sociedade se organiza, organizam-se as instituições

3 3 sociais. A educação contém também, mas não somente, a educação escolar. Tal relação de dependência deve ser considerada quando se fala de educação. Sendo assim, a expressão educação neste trabalho, refere-se ao aspecto cultural no sentido geral e amplo e não apenas escolar em sentido estrito. No contexto do século XVI podemos identificar no Brasil-colônia tanto a educação sistematizada, organizada pelos jesuítas em seus colégios a partir de 1553, como a educação que se efetivou desde o primeiro contato dos povos nativos com o europeu, onde já aconteceu um aprendizado. Além de aprender na catequese os dogmas e determinações morais da Igreja Católica, os indígenas também aprendiam nas missões jesuíticas a viver naquele novo contexto, onde a vida era produzida e reproduzida de forma completamente diferente daquela sociedade em que viviam até então. A sociedade fundada no trabalho aos poucos se impunha pelo processo colonizador, o que exigiu dos povos nativos novas práticas sociais e modos de pensar e produzir a vida. Não fazia parte da forma indígena, de modo geral, de produzir a vida, por exemplo, acumular. Com a instalação de uma nova forma de entender e reproduzir a vida, os europeus legaram aos índios não a completa negação dos seus costumes, mas a incorporação de novos. Essa incorporação de novos costumes, podemos chamar de aculturação. 6 A nova organização econômica e social implantada na empresa colonial pelos colonizadores europeus, exigiu dos povos nativos uma integração à nova sociedade que aqui se formava. Aqui reside o terreno de amplas discussões feitas sempre que se faz referência à educação jesuítica no Brasil-colônia. A educação escolar jesuítica não deve ser o horizonte de uma pesquisa que procura entender a história da educação no Brasil a partir da ação dos jesuítas. Antes mesmo de fundar colégios, os jesuítas atuaram na catequese indígena, e também contribuíram, quer com suas cartas, poemas, sermões ou peças de teatro, para a formação da cultura brasileira. Assim, sob uma perspectiva mais ampla de educação, podemos afirmar que não somente a prática escolar dos padres jesuítas tem relevância para um estudo na área de educação. Mais que isso, a ação cultural e econômica dos jesuítas no Brasil-colônia teve papel importante na formação da própria cultura brasileira. Os estudos que têm por tema a ação da Companhia de Jesus, seja na Europa ou no Brasil, estavam impregnados ou de paixão ou de repulsa. Assunção (2004) traz um panorama das discussões travadas acerca do duvidoso rigor científico das primeiras

4 4 análises sobre os padres jesuítas. 7 Este autor destaca a escassez de produções acerca da ação da Companhia de Jesus que não estejam ligadas às correntes do antijesuitismo, a partir do século XVIII, ou às análises apaixonadas, geralmente feitas pelos próprios membros da Ordem, quer contemporâneos a nós, quer contemporâneos aos padres que atuaram no período colonial. 8 No princípio do século XX, os debates eram polêmicos: de um lado, uma literatura que defendia a construção da modernidade no século XVI a partir da ação da Companhia de Jesus no mundo, do outro, autores que acreditam que os jesuítas eram representantes do mundo medieval, da escolástica, portanto, sinônimos de atraso. O autor segue afirmando que uma onda antijesuítica na Europa efervescia e causava discussões calorosas no meio intelectual e político; discursos apaixonados e exaltados ganhavam os jornais, estimulando o debate (...) (ASSUNÇÃO, 2004, 18). 9 Não é possível negar a construção da modernidade e a ação da Companhia de Jesus como um grande contributo, especialmente na área de educação. A ordem já nasceu moderna na Europa, e atribuir o atraso a essa ordem foi inclusive um dos pretextos do Marquês de Pombal para a expulsão dos jesuítas do Brasil no ano de No Brasil, atuou de forma incisiva para a conformação de uma lógica capitalista no tocante à produção material. Como uma ordem que contribuiu para a instalação no Brasil de uma nova lógica, a do mundo do trabalho, lógica esta carregada de modernidade, pode ser legada a ser uma ordem com ideais medievais? 10 Além disso, houve com os jesuítas inovações que diferenciavam a Companhia de Jesus das outras ordens medievais: não era uma ordem que pregava a clausura, ao contrário, apresentou-se como uma ordem missionária; além disso, tinha um voto a mais que as ordens medievais, o quarto voto, de obediência máxima ao papa. 11 TEATRO: arte e instrumento pedagógico Devemos considerar que José de Anchieta enquanto ainda vivia e estudava na Europa teve contato com o teatro humanista, mas também com o teatro medieval, que ainda persistia com temas cristãos. Para entender o estilo literário de Anchieta, bem como a estrutura de suas peças, faz-se necessário entendermos o teatro enquanto arte e também enquanto instrumento pedagógico, bem como a função que este assumiu historicamente, principalmente o teatro medieval.

5 5 Tanto na antiguidade clássica quanto na Idade Média o teatro desempenhou uma função que não era estritamente o entretenimento. Antes, podemos constatar sua função social e política. Tanto na sociedade greco-romana quanto na sociedade medieval, o teatro representava a ridicularização de uma sociedade que lutava para se manter coerente. Durante a Idade Média houve um estilo teatral bastante difundido e utilizado: o auto. Geralmente estes eram apresentados em praças, igrejas, ou mesmo nos castelos para reis e sua corte. Neste cenário, encontramos importante representante de tal estilo, Gil Vicente, que influenciou o estilo de Anchieta. Há muito que encontrar do estilo vicentino nas obras de Anchieta. A seguir iremos analisar brevemente o teatro enquanto instrumento pedagógico, bem como seus objetivos, sempre pressupondo sua ligação com o projeto político-pedagógico dos jesuítas. A pedagogia jesuítica utilizou com muita freqüência o recurso do teatro tendo como objetivo a catequese e a instrução. Em todos os colégios e escolas da Companhia, as referências ao teatro como parte da educação são freqüentes. Nas terras do Brasil, na Europa, ou, em qualquer lugar onde houvesse uma instituição escolar jesuítica, o teatro foi utilizado e muito discutido: (...) os jesuítas não inventaram o drama escolar, mas o cultivaram num nível especialmente alto por um longo período de tempo, numa vasta rede de colégios quase ao redor do mundo. Envolveram-se com o drama, poucos anos depois de abrir o colégio de Messina. (O MALLEY, 2004, p. 348) Podemos observar que, em todo o mundo, o teatro já era utilizado como instrumento pedagógico nos colégios da Companhia de Jesus muito antes de Anchieta escrever seu primeiro auto e continuar a catequizar utilizando-o. 12 Isto nos mostra a coerência interna e a rigidez hierárquica da própria ordem, e que havia uma regra maior que regulamentava o ensino. Para regulamentar o ensino nos colégios jesuíticos, foi elaborada a Ratio Studiorum, um conjunto de normas elaboradas com a finalidade de ordenar as atividades, funções e os métodos de avaliação nas escolas jesuítas. 13 Não estava explícito no texto o desejo de que a Ratio Studiorum se tornasse um método inovador que influenciasse a educação moderna, mesmo assim, foi ponte entre o ensino medieval e o moderno. 14 Antes do documento em questão ser elaborado, a Ordem tinha suas normas para o regimento interno dos

6 6 colégios, os Ordenamentos de Estudos, que serviram de inspiração e ponto de partida para a elaboração da Ratio Studiorum. O maior objetivo de Anchieta ao trazer até os pátios dos colégios jesuíticos e das igrejas a representação teatral, era o da catequese, tanto dos nativos quanto dos colonizadores. O contexto colonial do Brasil não possibilitava que, como acontecia na Europa, o texto de teatro fosse todo em latim. Desta forma, fica mais visível a razão pela qual Anchieta utilizou em seus autos até mesmo quatro idiomas: o latim, o português, o espanhol e o tupi, maneira direta de atrair o principal público dos missionários, os indígenas. Para conseguir atrair ainda mais seu público-alvo, Anchieta escrevia seus autos unindo temas e personagens indígenas e europeus, e também unindo os deuses indígenas e o Deus da religião católica, juntamente com todos os outros santos. No decorrer da análise das peças, tal ligação aparecerá de forma mais clara, bem como a participação das tribos nativas nas representações, geralmente apresentadas em dias de festa. Anchieta, bem como outros jesuítas, observou algumas manifestações ritualísticas dos índios, e utilizou aquela linguagem, tanto musical quanto corporal em seus autos. Com a discussão que se segue, poderemos entender um pouco da vida de José de Anchieta e de sua formação, ou seja, sua época histórica que influenciou em sua atuação junto aos índios no período colonial brasileiro. ENTRE O MEDIEVAL E O MODERNO José de Anchieta, nascido nas Ilhas Canárias, fez sua formação superior na Universidade de Coimbra. Foi no período de maior efervescência das idéias humanistas, período este de transição da sociedade medieval para a sociedade moderna, que José de Anchieta estudou no Colégio de Artes (HERNANDES, 2001, 10). Teve professores como Diogo de Teive, renomado humanista, e também dramaturgo, que escrevia peças com temas bíblicos, no entanto, inspirados nas tragédias e comédias greco-romanas. No quadro de oposição entre o teatro medieval e o humanista, entre o medieval e o moderno, podemos inserir, com certeza, o teatro anchietano. Com apenas dezessete anos, neste período, Anchieta se revelava um homem do seu tempo, e sofreu forte influência do teatro de Gil Vicente, poeta e teatrólogo português.

7 7 Chegou ao Brasil em 1553, onde viveu até a sua morte. Em 1554, participou da fundação do colégio da Vila de São Paulo de Piratininga, núcleo da futura cidade que receberia o nome de São Paulo. Exerceu cargos de comando na Companhia de Jesus em São Paulo de Piratininga, São Vicente, Vitória e Rio de Janeiro. Viajou por toda a costa brasileira, onde aprende a língua tupi, tendo inclusive escrito vários de seus textos nessa língua, além de uma gramática da língua. Na preocupação de catequização, propósito maior da ação da Companhia de Jesus na colônia, José de Anchieta compôs versos, discursos, textos históricos, cartas (que são hoje valiosos documentos para o estudo da história do Brasil e da filosofia educacional dos jesuítas), e, o que interessa especialmente neste projeto: peças de teatro. Tendo produzido como o fez, Anchieta é visto pelos estudiosos da literatura brasileira, conforme afirma Moisés (1977, p ), como um de seus fundadores. E no que diz respeito ao teatro, Prado (1999, p ) afirma que José de Anchieta foi o primeiro a escrever peças e com certa regularidade. Podemos perceber ao ler sua breve biografia que foi o teatro medieval quem trouxe às encenações temas cristãos, aliados a temas sociais e políticos. Seu primeiro contato com o teatro foi em Coimbra, com as obras de Gil Vicente e sua escola e, por este motivo, a métrica, prosódia e mesmo suas idéias eram parecidas com as da escola vicentina. Então, quando chegou ao Brasil e observou o gosto dos índios por danças, cantos e espetáculos, surgiu uma possibilidade: catequizar os índios adaptando sua própria crença. A partir de então, a inspiração de Anchieta se desmembrou e, além da escola vicentina, inspirou-se no contexto indígena. Cardoso (1977) em sua obra identifica tal ligação entre o estilo de Anchieta e de Gil Vicente. O estilo anchietano era simples e a influência da cultura católica portuguesa pode ser notada inclusive, na freqüência de personagens como: o diabo e anjos. Eles cumpriam o papel de diversão, amedrontamento, catequese, enfim, os valores católicos dos quais a Companhia de Jesus era zelosa guardadora, formuladora, e, propulsora, uma vez que veio ao Brasil como ordem oficial da Coroa Portuguesa com um duplo objetivo: catequizar os índios e instruir os colonos. As peças escritas por Anchieta e reunidas por Cardoso (1977) servirão de fonte para a análise, de um panorama geral, da pedagogia jesuítica, tendo em vista sempre sua significação para a formação dos homens do Brasil colonial.

8 8 ANÁLISE DAS PEÇAS Conforme vimos, José de Anchieta entrou em contato com as obras de Gil Vicente quando estudou no Colégio de Artes em Coimbra. Gil Vicente escrevia suas obras com o objetivo de divertir a corte portuguesa. Por ser um homem que presenciou a transição do medieval para o moderno assim como Anchieta em suas obras estão presentes conflitos ideológicos, pois, se por um lado levantava críticas à sociedade burguesa-mercantil, por outro ainda seguia o pensamento conservador medieval, presente devido à busca do religioso. Através de suas farsas, recheadas de ironias, Gil Vicente fazia a sociedade rir de seus próprios costumes mesmo os reis e príncipes além de possuir o prestígio dos reis D. Manuel e D. João III e de toda a sua corte (SPECHOTO et al., 2001, 135). As obras de Gil Vicente dividem-se em obras de devoção, farsas, obras miúdas (monólogos e paráfrases de Salmos), comédias e tragicomédias. Segundo a temática, no entanto, dividem-se em autos, farsa e comédias (Idem, ibidem, 14). Os autos, de nosso interesse maior neste texto, são composições religiosas, pastoris. Podemos notar que nestes autos há uma grande proximidade com o mundo medieval, pois a temática reflete os valores daquele período, como as alegorias. A partir da trilogia das barcas e do Auto da Alma pode-se notar, também, uma crítica social, quando o papel do diabo é ridicularizar personagens de destaque na sociedade como o Fidalgo, o Onzeneiro (Usurário) e o Frade. Como em Gil Vicente, encontramos também em Anchieta a característica de alegorizar temas cristãos, dando-lhes vida humana e voz. Podemos observar claramente essa aproximação ao vermos, por exemplo, os nomes dados às personagens do Auto da Alma e do Auto da Pregação Universal: Alma, Igreja e Dois diabos no primeiro e Guaixará (diabo), Aimbiré (diabo) e Anjo no segundo. Outra semelhança, que vai além das personagens, é a temática e o desenrolar da peça. Em ambas vemos o papel de Cristo como redentor dos homens temática cristã, no caso, católica e a vitória do bem sobre o mal. No caso de Anchieta, ao dar voz para essas alegorias era possível mostrar na prática, sobretudo aos índios, o que Deus (e a igreja católica) esperava deles, exercendo o papel da instrução destes na fé católica. Outro ponto a ser destacado é o fato de que o teatro, bem como a música e as danças presentes, eram um atrativo para os

9 9 índios, que se identificavam devido às adaptações feitas por Anchieta e viam semelhanças com a sua própria cultura. 15 Este trabalho se propõe analisar de maneira geral todas as peças de José de Anchieta, que ao todo somam doze. Neste trabalho será dedicada mais atenção à análise do Auto da Pregação Universal, que foi, segundo Cardoso (1977) o auto mais representado na costa brasileira. Em seguida, as peças serão analisadas em ordem cronológica. Conforme também foi afirmado, ao ser feita a análise dos textos de Anchieta, paralelamente alguns serão comparados eventualmente com duas peças de Gil Vicente: Auto da Barca do inferno (1517) e Auto da Alma (1518). Foram escolhidos esses dois textos pelo fato de serem obras de devoção, autos, que é o mesmo estilo dos textos teatrais de José de Anchieta. O Auto da Pregação Universal foi o primeiro auto escrito por Anchieta, por ocasião da comemoração do Natal de Este primeiro auto foi escrito em três línguas, ou seja, em um mesmo texto encontramos a presença do português, do tupi e do espanhol. 16 A denominação Universal do título significa que este foi dirigido tanto aos brancos quanto aos índios. As personagens do auto nos deixam bem clara a união entre temas nativos e europeus, entre a religião considerada pagã, dos indígenas e a religião do colonizador europeu, a católica. Podemos observar, já nas personagens, que a participação dos índios era fundamental para que recebessem a mensagem com maior ênfase. Outro ponto a ser destacado é que as personagens que representavam os nativos eram meninos, ou seja, eram as crianças indígenas o alvo principal da empreitada educacional dos jesuítas em terras brasileiras. Quanto à utilização quase que estilizada de crianças índias, esta fazia parte da estratégia geral dos padres jesuítas. O projeto era ousado: inverter a ordem dos ensinamentos entre as comunidades indígenas, onde era valorizada a sabedoria dos índios mais velhos. Ao atrair as crianças, os padres se informavam sobre os seus costumes e, ensinando a eles uma nova religião e nova cultura, esperavam que as novidades fossem transmitidas aos demais índios. O projeto unia, assim, educação, cultura e catequese. 17 Anchieta uniu em sua peça diabos com nomes indígenas (Guaixará e Aimbiré), com um Anjo e também com a figura bíblica de Adão, ficando, portanto, demonstrada a

10 10 união, tantas vezes citada, entre a cultura indígena e a ocidental, feita por José de Anchieta em suas peças teatrais. A mensagem central de redenção contida no texto de Anchieta pode ser entendida no último ato, quando o pelote domingueiro, ou seja, a graça de Deus é devolvida aos homens com o nascimento de Jesus. A peça que partiu da idéia do pecado original de Adão tem por desfecho a humanidade sendo redimida pelo nascimento do filho de Deus. Por se tratar de um Auto encomendado para o Natal, o último ato é encenado ao lado do presépio, onde Adão recupera a comunhão com Deus. Uma mensagem clara e que exerce um papel fundamental na catequese, o de reforçar o compromisso com Deus. Neste caso, a pregação já havia sido feita, os princípios católicos já haviam sido apresentados tanto aos índios quanto aos colonos. A segunda peça escrita por José de Anchieta foi o Auto de São Lourenço, apresentado no ano de 1587 em Niterói. Tal auto é uma adaptação feita a partir do Auto da Pregação Universal, e tem por novidade a presença de São Lourenço. O mártir desta peça não é Jesus, como na Pregação Universal, mas sim São Lourenço. O santo aparece também como aquele que salvou a aldeia dos demônios, os mesmos do primeiro auto: Guaixará e Aimbiré. O ato inicial consiste no martírio de São Lourenço, diferente do ato I da Pregação Universal, que, conforme vimos, tem início com o pecado original de Adão. No entanto, a temática desenvolvida é a mesma: a luta do bem contra o mal. O ato II pouco se difere entre um e outro auto, sendo o ato no qual os demônios invadem a aldeia, aqui representantes dos costumes indígenas. Os versos correspondem aos versos do primeiro auto. No último ato, é interessante perceber a personificação das figuras: Temor de Deus e Amor de Deus. Podemos perceber clara influência de Gil Vicente, que em sua obra o Auto da Barca do Inferno, personifica um anjo e um diabo, possibilitando diálogos como esse: ONZENEIRO: Para onde caminhais? DIABO: Oh! Que má hora chegais Onzeneiro meu parente! (GIL VICENTE, 2001, p. 75) Assim como o diabo dialoga com personagens como o bispo, o fidalgo ou o onzeneiro, assim também o faz o anjo. Do Auto de São Sebastião restou no caderninho de Anchieta somente um excerto, que corresponde ao quarto ato. Neste ato podemos novamente perceber a

11 11 personificação da figura do anjo, único personagem no trecho que se tem notícia. Segundo Cardoso há uma possibilidade de que esse auto seja o mesmo descrito por Fernão Cardim, por isso afirma que provavelmente foi escrito no ano de 1584 por ocasião da vinda do visitador P. Cristóvão de Gouveia, para festejar o dia de São Sebastião. Duplo motivo da encenação: um recebimento e o dia do padroeiro do Rio de Janeiro, São Sebastião. O trecho que chegou até nós traz um anjo exaltando os feitos de São Sebastião, sobretudo agradece pela proteção ao Rio de Janeiro. Para entender a quarta peça de Anchieta é necessário contarmos a história do personagem central, o P. Pero Dias. A peça intitulada Diálogo do P. Pero Dias Mártir foi encenada em São Vicente ou em Salvador e narra o diálogo entre o padre jesuíta, alunos do colégio, cantadores e Jesus Cristo. Junto com outros 14 jesuítas, o P. Pero Dias zarpou em setembro de 1571 rumo ao Brasil. No entanto, foram atacados por João Capdeville, que Cardoso (1977) frisa ter sido calvinista. Foram mortos doze dos missionários, e esse martírio passou a ser comemorado no Brasil a partir de O pano de fundo dessa peça é o martírio, mas vejamos qual foi sua finalidade. Mais uma vez podemos dizer que a intensão de José de Anchieta, e aqui já podemos estar sendo um pouco repetitivos, é a catequese. No entanto, estamos, por comparação, trazendo uma unidade à obra de José de Anchieta por meio dessa análise. Utilizou-se do exemplo de um mártir para passar a mensagem central do cristianismo: a de Jesus Cristo Salvador dos homens. O auto que se segue na coletânea é Na Aldeia de Guarapari. Segundo Cardoso (1977, p. 204), essa é peça mais longa de Anchieta dentre as que foram escritas exclusivamente em tupi. Por esse motivo, é também a que mais contém indianismos. É dividida em cinco atos, e tem início e término com cantos e danças, comum nas peças de Anchieta. Foi encenada na aldeia de Guarapari no Espírito Santo, provavelmente em 8 de dezembro de 1585, e foi encenada ao ar livre. Assim como no Auto da Pregação Universal, essa peça inicia e termina com cânticos e danças. Os atos, de modo geral, muito se parecem com o primeiro texto teatral de Anchieta, que nos atos centrais, ou seja, no clímax da peça, temos um diálogo dos dois demônios condenando a prática dos índios. Uma retomada temática pode ser abordada nesse auto em relação ao primeiro: a condenação dos costumes indígenas. A crítica nesse auto, porém, feita à poligamia, é mais direta (JOSÉ DE ANCHIETA, 1977, p. 217). A temática central do Auto da Alma é a

12 12 afirmação da imortalidade da alma, temática esta que também aparece no auto de Anchieta em questão. Os dois últimos atos não são diálogos e são bem curtos. Consistem na despedida das imagens das santas e na dança de dez meninos respectivamente, despedida já conhecida na estrutura das peças de Anchieta, a da despedida com canto e dança, assim como a mesma começou. Além de serem encenadas para festejar padroeiros, as peças eram também encenadas em recebimento de alguma autoridade. No caso da sexta peça escrita por Anchieta, o Recebimento que fizeram os índios de Guarapari ao Padre Provincial Marçal Beliarte, tal temática já está posta no próprio título. Foi encenada no ano de 1589 na aldeia de Guaraparim no Espírito Santo. Os personagens se repetem, bem como a estrutura da peça. São as personagens um Índio, um Anjo, dois diabos, e, mais uma vez, dez meninos que cantam e dançam no início e no final da peça. O primeiro ato é a saudação ao padre Beliarte pelo indígena, seguido das boas vindas da aldeia. O padre é introduzido a partir do discurso como um homem santo, um pastor desejado, um pai, um regedor, um defensor e um vigário de Cristo. 18 No segundo ato o diabo se dirige à igreja criticando a visita do padre. Mesmo que esta peça não tenha sido escrita em mais de duas línguas como o Auto da Pregação Universal, a mensagem aqui da catequese e da crítica às práticas no Brasil-colônia são dirigidas tanto aos índios quanto aos brancos. Pode-se identificar novamente a preocupação dos padres em manter os colonos próximos da fé católica, sobretudo em terras tão distantes e com a ameaça de uma nova fé: o protestantismo. A novidade presente neste auto está no terceiro ato quando quem expulsa os diabos da aldeia é um índio guerreiro, e não santos ou mártires como nos anteriores. Neste auto os diabos também não têm mais nomes de chefes indígenas. Na fala do índio guerreiro dirigida ao diabo podemos encontrar a divindade indígena Tupansy, a Lua, relacionada à Virgem Maria. Ao final do ato, o bem vence o mal, o bem representado pelo índio convertido e o mal pelo diabo. A pedagogia do exemplo poderia ser um instrumento eficiente, uma vez que os índios se reconheceriam na personagem indígena, e da mesma forma, se manteriam na fé católica ou se converteriam à mesma. A peça é finalizada com a dança dos dez meninos no quarto ato, composta de dez estrofes, seguidas de uma música adaptada de uma cantiga popular do século XVI. Era mais eficiente passar uma mensagem de forma lúdica, intenção de Anchieta com os cantos e danças presentes em suas peças.

13 13 A sétima peça escrita por Anchieta foi escrita em comemoração ao dia da assunção e foi intitulada Dia da assunção, quando levaram sua imagem a Reritiba. Foi encenada em Reritiba, hoje Anchieta, no Espírito Santo, cidade fundada no provincialato de Anchieta, provavelmente em 15 de agosto de De acordo com a estrutura das outras peças, este texto teatral composto de cinco atos tem início com um coro de meninos para receber a imagem no porto. O cenário também se repete: primeiro ao ar livre, iniciando no porto, passando pelo adro da Igreja e terminando dentro da igreja (CARDOSO In: JOSÉ DE ANCHIETA, 1977, p ). As personagens são o Anjo protetor da aldeia, um coro de meninos, Diabo com demônios que o acompanham, seis selvagens dançando e dois índios civilizados dançando. Gostaríamos de atentar para os dois últimos grupos de personagens, que dançam no terceiro e quarto atos. Anchieta na letra cantada pelos índios mostra o desejo dos mesmos em se converter. Na fala dos índios já convertidos, civilizados, encontramos devoção à Maria e pedidos de proteção. Suas falas são mais uma oração, que preparam a passagem para o quinto e último ato, o momento da despedida com mais uma adaptação de uma cantiga popular. 19 A oitava peça de Anchieta foi escrita também em virtude da visita de uma autoridade, neste caso, do padre Bartolomeu Simões Pereira. Intitulada Recebimento do administrador apostólico P. Bartolomeu Simões Pereira, esta peça é um texto curto, baseado em outra recepção de autoridade, aquele analisado anteriormente, por ocasião da chegada do provincial P. Beliarte. Sua vinda tinha por objetivo crismar índios já batizados: Por isso a peça se chama também Auto da Crisma. (CARDOSO In: JOSÉ DE ANCHIETA, 1977, p. 259). Foi encenada possivelmente em fins de 1591 ou princípios de 1592 em uma aldeia indígena do Espírito Santo. Por se tratar de um recebimento, assim como o ato inicial de recebimentos de imagens, este auto tem início no porto, onde cinco meninos saúdam o visitante com música. Mais uma vez o texto de Anchieta contém a junção dos deuses indígenas com a doutrina católica, quando a mãe de Deus é chamada de mãe de Tupã (JOSÉ DE ANCHIETA, 1977, p. 266). Mais um recebimento está entre os textos teatrais de José de Anchieta. Em Recebimento do P. Marcos da Costa, oitavo texto a ser analisado neste trabalho, o intuito de Anchieta era o de que os visitantes se interessassem pelas missões indígenas. (CARDOSO In: JOSÉ DE ANCHIETA, p ). Mais curto que os autos de recebimentos anteriores, queria causar uma boa impressão, mostrando a conversão dos

14 14 povos indígenas. Foi encenado em Reritiba no início de 1596, e teve por cenário o porto e o adro da igreja. Difere-se dos outros autos já analisados por não haver a presença de alegorias. São os personagens somente meninos índios. Após a recepção usual no porto, o tema central consiste em um diálogo entre quatro meninos, um deles vestidos de marinheiro. Um diálogo entre os quatro meninos exalta as virtudes do padre Marcos da Costa. A temática bem versus mal aparece de forma tangencial nesta peça de Anchieta, mesmo assim ela se faz presente, até mesmo por que o objetivo central de Anchieta com seus textos era a catequese. A décima peça foi representada por ocasião da chegada da relíquia das onze mil virgens. Este auto intitulado Quando no Espírito Santo se recebeu uma relíquia das onze mil virgens, segundo Cardoso (In: JOSÉ DE ANCHIETA, 1977, p. 276), foi chamado comumente de Auto de Santa Úrsula, uma vez que a mesma foi uma das virgens mártires mortas na Alemanha. Pela primeira vez temos conhecimento do nome de um dos atores de uma encenação; seria este ator João de Souza Pereira, que teria encenado outra peça de Anchieta em São Vicente em Esta peça foi mais uma das muitas adaptações da encenação de São Vicente que não foi conservada, mas que foi descrita por Cardim em suas cartas. É possível fazer tal afirmação uma vez que, conforme as cartas de Cardim, o prólogo e o epílogo iniciados com Cordeirinha Linda, se repetiam em outras encenações (CARDOSO In: JOSÉ DE ANCHIETA, 1977, p. 277). Provavelmente foi encenada no ínicio de 1595 na vila de Vitória no Espírito Santo, e teve por cenário, assim como a maioria, o porto e o adro da igreja de S. Thiago. Como era comum em autos medievais, aparecem neste auto como personagens alguns santos da Igreja. Gil Vicente em seu Auto da Alma também utilizou santos como personagens. Enquanto no auto vicentino participam dos diálogos Santo Agostinho, Santo Ambrósio, São Jerônimo e São Tomás, no auto anchietano estão presentes São Vital, São Maurício e Santa Úrsula. Composto de cinco atos, destaca-se os versos que iniciam e terminam a peça, muito conhecidos e considerados como poesia brasileira por muitos manuais de literatura destinados ao Ensino Médio no Brasil (JOSÉ DE ANCHIETA, 1977, p. 278). Cordeirinha linda é uma canção composta por Anchieta, e tais versos compõem tanto a recepção da relíquia de uma das mil virgens no porto quanto a despedida da mesma, no último ato. O quarto ato é um diálogo entre São Maurício e São Vital, que mostra um pouco da situação do século XVI em relação às invasões que a

15 15 colônia sofria. Pode-se ler nos versos uma referência à algumas dessas invasões no século XVI. Freqüentes eram as invasões francesas e inglesas na América portuguesa e também na espanhola, mesmo após da instalação no Brasil do governogeral e das capitanias hereditárias. Apesar de ter sido pioneiro nas grandes navegações, Portugal sofreu com os ataques de outros povos que não concordavam com a divisão do mundo entre portugueses e espanhóis pelo Tratado de Tordesilhas. No último ato os atores entram na igreja se despedindo da relíquia, e como de costume nos textos de Anchieta, a despedida consiste em um canto. Outro ponto destacado por Cardoso (1977, p. 284) é o uso de expressões em latim, conhecidas por toda a população, característica esta também presente em Gil Vicente. A décima peça escrita por José de Anchieta foi Na Vila de Vitória ou Auto de São Maurício, foi provavelmente apresentada em 22 de setembro de 1595, e é a mais extensa (contém 1674 versos) e a melhor elaborada de todos os autos anchietanos (CARDOSO In: JOSÉ DE ANCHIETA, 1977, p. 286). Essa peça teria um especial significado, uma vez que a vila de Vitória havia recentemente expulsado corsários franceses e ingleses, bem como passado por um período de seca e ataques de índios (CARDOSO In: JOSÉ DE ANCHIETA, 1977, p. 285). Na época, Anchieta era Superior no Espírito Santo, e a capitania passava por um momento particularmente agitado devido à um problema de sucessão. Outros personagens também foram inspirados nesse contexto, por exemplo, o Bom Governo é a personificação de Azeredo e, o embaixador do Paraguai, inspirado no partido de Filipe II. Pode-se perceber outra questão que envolvia esse contexto histórico, a União Ibérica ( ). Por esse motivo Filipe II, rei da Espanha, reivindicava o direito de tomar posse da capitania, uma vez que, com a junção dos reinos da Espanha e de Portugal, a Espanha passou a comandar também as colônias além-mar portuguesas. Mais que no Auto da Pregação Universal, neste auto Anchieta utilizou o recurso da personificação, não somente os já citados, mas também as personagens Temor e Amor de Deus. Esse auto trata da temática do bem que vence o mal, mas não traz muitos elementos da cultura indígena. Relata mais a confusão política da vila e atribui às mesmas aos feitos de Lúcifer. Não consiste aqui em ensinar os índios, mas sim os colonos, os habitantes da vila, a passarem por aquela crise. Parece coerente afirmar que outra indicação desse dado é o fato de que esse auto foi escrito somente em português e castelhano, não tendo a presença do tupi.

16 16 Seguindo em nossa discussão, cabe neste ponto voltarmo-nos à última peça que nos propusemos a analisar. Anchieta escreveu Na Visitação de Santa Isabel um mês antes de sua morte. Temos, portanto, a indicação de que Anchieta compôs até os seus últimos dias. Essa peça não foi escrita em várias línguas, como as outras, mas somente em castelhano. Foi escrita a pedido da Confraria da Misericórdia de Vila Velha, para que fosse representada em sua capela. A peça foi representada em Vila Velha do Espírito Santo, no dia 2 de julho de 1597, no Adro da Igreja do Rosário de Vila Velha. Na pessoa do romeiro ele se despede e encontra conforto para a hora de sua morte na Virgem Maria e em seu amparo. Cardoso (1977) destaca a aproximação com os autos de Gil Vicente, pelo fato de não haver distinção entre os atos da peça, Na Visitação de Santa Isabel termina com o mesmo mote que a começou. Tal característica nos revela mais uma marca dos autos de Gil Vicente na escrita de Anchieta. Mais que a intenção da catequese, foi um momento no qual Anchieta demonstrou sua devoção particular. A preocupação nessa peça claramente pode ser percebida não como o da catequese. Mas sim, era o momento no qual Anchieta era o próprio romeiro, era uma oração pessoal. Mesmo assim tem função pedagógica, a pedagogia do exemplo. Mesmo à hora da morte, enfermo, José de Anchieta poderia ser tomado como exemplo de como deve agir um cristão, ainda que em uma situação difícil. De modo geral, as peças de Anchieta possuem uma estrutura parecida, e objetivavam a catequese dos índios ou a instrução dos colonos. Ou seja, formar o homem que atuaria naquele momento histórico, que contribuiria para o projeto colonizador era sua intenção. Diferente de Gil Vicente, que utilizou seu teatro para contestar os costumes de uma sociedade, ridicularizando-a, Anchieta escreveu suas peças para educar, visando a manutenção de um projeto maior: o projeto colonizador português. Não nos esqueçamos que os jesuítas aqui estavam como ordem oficial da coroa portuguesa e Estado e Igreja estavam ligados pelos laços do padroado. CONCLUSÃO As discussões contidas neste trabalho não tinham o intuito de esgotar o estudo do teatro de José de Anchieta, mas sim levantar alguns pontos mais gerais, alguns indicados pelo padre Armando Cardoso, outros observados no decorrer da pesquisa. Não é possível entender o texto de Anchieta sem entender o homem Anchieta, que

17 17 viveu em um século de transição, de transformação, desta forma, ainda muito ligado ao período anterior. Pode-se encontrar em seus textos, nesse caso específico, em suas peças de teatro, elementos que mostram tal transição. Um exemplo que podemos citar é o fato de utilizar línguas vulgares, característica moderna, e, em uma mesma peça de teatro, utilizar a temática medieval do bem versus o mal. A junção de características medievais e modernas foi acrescida de características do Brasil-Colônia, principalmente no que diz respeito aos costumes indígenas incorporados tantas vezes por Anchieta em seus escritos. O costume indígena que mais aparece em seus textos é o de receber com festa visitantes considerados amigos. Tal costume aparece aliado ao gosto indígena pelo canto, dança, adornos de penas e plumas, além de pinturas corporais. Em todos os autos de José de Anchieta encontramos, ainda que de forma tangencial, o tema medieval da luta entre o bem e o mal. Anchieta estava mostrando por meio dessas encenações aos índios, sobretudo, que a vida que eles levavam antes de conhecerem os jesuítas e a religião católica era uma vida de pecado e que seus professores os teriam libertado de seus vícios através da catequese. Também em todas as peças a figura da sagrada família foi utilizada por Anchieta para formatar uma nova organização das tribos, estabelecer diferentes laços de parentesco. A expansão marítima portuguesa se deu no contexto mercantilista, e foram imbuídos deste ideário que os colonos vieram para cá, bem como a Companhia de Jesus. Nas missões, com a catequese, mas também no cotidiano, os índios aprendiam uma nova forma de produzir sua vida. A catequese tinha um fim, e este fim estava inserido em um contexto muito mais amplo que a atuação dos jesuítas na conversão dos nativos à fé católica, o processo colonizador português. Existia a preocupação em docilizar os povos indígenas para que certa ordem, de acordo com a nova lógica estabelecida, fosse obedecida. E não há ordem sem subjugação. Podemos afirmar que a catequese, além de dominar moralmente, dentro do processo colonizador cumpriu a função da manutenção da ordem social estabelecida ao amansar e domesticar os índios, quer na doutrina católica, quer no novo ritmo de trabalho introduzido pelos portugueses. Para a manutenção daquela sociedade era necessário também manter os colonos que aqui se estabeleceram ligados à igreja católica. Mesmo que com menos ênfase em relação à mensagem aos índios, há nos textos de Anchieta a preocupação em pregar para os colonos e seus filhos.

18 18 Fica clara neste trabalho também a influência de Gil Vicente nos textos teatrais de José de Anchieta, bem como a temática medieval, já mencionada acima a título de exemplo, do bem versus o mal. A personificação das personagens, o estilo do texto, geralmente autos, a última peça de Anchieta sem divisões em atos e o fato de iniciar e terminar uma peça com o mesmo verso, além da métrica das rimas, todas elas características encontradas nos textos de Gil Vicente e de José de Anchieta. Tanto Gil Vicente quanto José de Anchieta tem um estilo simples na escrita de seus textos. As peças de Anchieta são simples no tocante à escrita, ao estilo, entretanto, não há ausência de um estilo literário, por ser muito parecido com o de Gil Vicente, que é considerado um dos expoentes do teatro ibérico quinhentista. Assim como Gil Vicente ridicularizava os costumes da corte em suas peças, o padre Anchieta condenava os costumes indígenas. Todavia, em José de Anchieta temos com o objetivo maior, o da catequese, a manutenção de uma ordem nascente. A essas características, somam-se as adaptações feitas por Anchieta para tornar o teatro um eficiente instrumento pedagógico, como a utilização de mais de uma língua em suas peças, em quase todas com a presença do tupi, inclusive com algumas delas exclusivamente escritas em tupi, como é o caso do auto Na Vila de Guarapari, o canto, a dança, pinturas corporais e adornos com plumas e penas. Tudo isso aliado ao costume indígena dos recebimentos, muito utilizado por Anchieta, tanto para receber figuras políticas quanto relíquias religiosas. Além do mais, em suas peças os personagens que representam os índios convertidos são crianças, principal objeto da catequese jesuítica. Conforme vimos, pode-se considerar tal utilização dos meninos índios para passar a mensagem já aprendida aos mais velhos uma inversão, uma vez que na sociedade indígena a tradição é passada dos mais velhos para os mais jovens. Deve-se considerar que mesmo com as particularidades apontadas em cada texto, todos eles estão inseridos em um mesmo contexto e, ainda que sejam distintos no tocante ao estilo, trazem como objetivo principal a catequização do índio e, em menor escala, procura manter os colonizadores ligados aos dogmas da religião católica. A intenção desse jesuíta foi utilizar o teatro como um recurso pedagógico, aliando-o aos gostos indígenas pela dança e pelo canto, além das roupas coloridas e da pintura corporal. José de Anchieta encontrou no teatro um instrumento eficaz, no caso do

19 19 Brasil, para colocar em prática os ideais da Companhia de Jesus e, é necessário acrescentar, para o sucesso da ação colonizadora portuguesa. NOTAS 1 Aluna do Mestrado em Educação da Universidade Estadual de Maringá, Fundamentos da Educação. Endereço eletrônico: vanessaruck@bol.com.br. Endereço: Praça Nossa Senhora Aparecida, 64 fundos, Vila Esperança Maringá Paraná Brasil. Fone: (44) Professor Dr. do Departamento de Fundamentos da Educação e do Mestrado em Educação da Universidade Estadual de Maringá Paraná - Brasil. Endereço: Rua Saldanha Marinho 870, Apto Zona Maringá -PR. Brasil. Fone: Endereço eletrônico: caatoledo@uem.br 3 RUCKSTADTER, Vanessa Campos Mariano. José de Anchieta: teatro e educação no Brasil-Colônia. 4 Tal volume foi destinado a discussões na área da história da educação no período colonial séculos XVI e XVIII. É este também o período da presença jesuítica no Brasil Vale lembrar aqui que as escolas são instituições modernas, portanto recentes. De modo geral, foi somente a partir da revolução burguesa na França que a educação financiada pelo Estado deveria ser oferecida para todos de forma gratuita. Ver mais sobre o assunto em LEONEL, Zélia. Contribuição à história da escola pública: elementos para a crítica da teoria liberal da educação. 6 Sobre a discussão das diversas explicações do conceito aculturação ver a obra de CUCHE, Denis. A noção de cultura nas ciências sociais, especialmente o quarto capítulo. 7 O primeiro a elaborar uma História da Companhia de Jesus no Brasil (1949), foi Serafim Leite, que reuniu em dez volumes, estudos sobre a atuação da Companhia de Jesus, bem como compilou importantes documentos antes dispersos por vários arquivos, como por exemplo, o Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Portugal, o Arquivo Histórico Ultramarino também em Portugal, o Arquivo Nacional e a Biblioteca Nacional, no Rio de janeiro, entre outros. Por este motivo, tal autor é considerado referência obrigatória a todo aquele que estuda os jesuítas no Brasil. 8 Para exemplificar, podemos destacar, por exemplo, as duas primeiras biografias de José de Anchieta feitas por dois de seus contemporâneos. Uma delas é a biografia escrita em 1599, logo após a morte de Anchieta por CAXA, Quirício (SJ). Vida e morte do padre José de Anchieta. A outra foi escrita de 1604 a 1609 por RODRIGUES, Pero (SJ.). Pe. Anchieta. As duas biografias são intencionalmente escritas após a morte de Anchieta com o intuito de acelerar o processo de beatificação do padre, beatificação esta que foi concretizada em 1980 pelo papa João Paulo II. 9 Ver mais sobre este debate em: Assunção, P. de. Negócios jesuíticos, p Os grandes descobrimentos estão inseridos em um processo de consolidação do modo capitalista, que em tal período era sobretudo comercial. Ao período de consolidação do modo capitalista, e juntamente da ascensão da burguesia, chamamos modernidade. Claro que não podemos legar à modernidade uma característica econômica somente. Um dos principais aspectos a ser considerado é a quebra do paradigma medieval, dando lugar à cientificidade, baseada, sobretudo, no método científico. Ver mais sobre em THEODORO, Janice. Descobrimentos e Renascimento, Estas duas características foram importantes para a expansão da fé católica dentro do ideal da chamada Contra-reforma católica, movimento este essencialmente moderno. A Contra-reforma católica foi um meio tanto de deter a propagação do protestantismo pelo mundo, quanto de propagar a fé católica, principalmente no novo mundo. Ver mais sobre este assunto na obra de DANIEL-ROPS, Henri. A Igreja da Renascença e da Reforma, Tal obra traz uma importante discussão acerca do significado do conceito Contra-Reforma. Segundo tal autor a Igreja Católica não fez reformas somente a partir do momento da ruptura da cristandade ocidental, mas sim, ao longo de toda sua história. 12 O padre jesuíta português Luís da Cruz escreveu também peças de teatro no século XVI em Portugal. Sobre o teatro jesuítico em Portugal, veja-se: MELO, A. M. M. Teatro jesuítico em Portugal no século XVI: a tragicomédia Iosephvs do P.e (sic) Luís da Cruz, S. J. 13 Sua primeira edição, de 1599, além de sustentar a educação jesuítica ganhou status de norma para toda a Companhia de Jesus. 14 Cf.: ARNAUT DE TOLEDO, Cézar de Alencar. Razão de estudos e razão política: um estudo sobre a Ratio Studiorum. In: Acta Scientiarum, 22, 1, p , A utilização do teatro era muito comum na Península Ibérica durante toda a Idade Média A respeito do teatro religioso medieval na Península Ibérica veja-se GIMENEZ, José Carlos. Imagens da sociedade

20 20 medieval castelhana através das representações dramáticas, especialmente p LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval, volume II, p Hessel e Raeders (1972) em sua obra O Teatro Jesuítico no Brasil levantam uma dúvida quanto à autoria do Auto da Pregação Universal ser de José de Anchieta. p Veja-se CHAMBOULEYRON, Rafael. Jesuítas e as crianças no Brasil quinhentista. In: DEL PRIORI, Mary (org.). História das crianças no Brasil. p Mesmo não sendo pretensão deste breve texto analisar a métrica dos textos, Cardoso mostra que Anchieta tinha conhecimento de rimas e métrica (In: JOSÉ DE ANCHIETA, 1977, p. 238). 19 Anchieta em seus textos rima em tupi, seguindo uma métrica adaptada (CARDOSO In: JOSÉ DE ANCHIETA, 1977, p. 257). REFERÊNCIAS ARNAUT DE TOLEDO, C. A. Razão de estudos e razão política: um estudo sobre a Ratio Studiorum. In: Acta Scientiarum, 22, 1, p , ASSUNÇÃO, P. Negócios Jesuíticos. São Paulo: Edusp, CARDOSO, A. Introdução e notas. In: JOSÉ DE ANCHIETA. Obras Completas de José de Anchieta. 3 volume. São Paulo: Loyola, p CAXA, Q.; RODRIGUES, P. Primeiras Biografias de José de Anchieta. Introduções e notas do Pe. Helio Abranches Viotti, (S. J.). São Paulo: Loyola, CHAMBOULEYRON, R. Jesuítas e as crianças no Brasil quinhentista. In: DEL PRIORI, M. (Org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999, p CUCHE, D. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: Edusc, DANIEL-ROPS, H. A Igreja da Renascença e da Reforma. São Paulo: Quadrante, GIL VICENTE. Farsa de Inês Pereira, Auto da Barca do Inferno e Auto da Alma. Introd. e notas de Cristina Spechoto et al. São Paulo: Martin Claret, p GIMENEZ, J. C. Imagens da sociedade medieval através das representações dramáticas. 127f. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Ciências Humanas e Letras da Universidade Estadual Paulista. Assis, HERNANDES, P. R. O Teatro de José de Anchieta: arte e pedagogia no Brasil colônia. 137f. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Educação, UNICAMP. Campinas, HESSEL, L.; RAEDERS, G. O Teatro Jesuítico no Brasil. Porto Alegre: Editora da UFRGS, JOSÉ DE ANCHIETA. Obras Completas de José de Anchieta. 3 volume. São Paulo: Loyola, LACOUTURE, Jean. Os jesuítas. 1. Os conquistadores. Porto Alegre: L&PM, 1994 LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. v. II. Lisboa: Editorial Estampa, LEONEL, Z. Contribuição à história da escola pública: elementos para a crítica da teoria liberal da educação. 258f. Tese de Doutorado. Faculdade de Educação, Unicamp, Campinas, MELO, A. M. M. Teatro jesuítico em Portugal no século XVI. Braga: Fundação Calouste Gulbenkian, O MALLEY, J. W. Os primeiros jesuítas. São Leopoldo: UNISINOS; Bauru: Edusc, PRADO, D. de A. História Concisa do teatro brasileiro. São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial, 1999.