MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA

Transcrição

1 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA Nº 3086/ PGGB RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO Nº /SC AGTE.(S) : SINDICATO DOS CONDUTORES AUTÔNOMOS DE VEÍCULOS RODOVIÁRIOS DE FLORIANÓPOLIS ADV.(A/S) : LUIZ MAGNO PINTO BASTOS JÚNIOR E OUTRO(A/S) AGDO.(A/S) : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA PROC.(A/S)(ES): PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA INTDO.(A/S) : MUNICÍPIO DE FLORIANÓPOLIS RELATOR : MIN. GILMAR MENDES SEGUNDA TURMA Recurso extraordinário com agravo. Serviço público de táxi. Natureza. Autorização. Inexistência de obrigatoriedade de licitação. Precedente do Plenário do STF que conduz ao provimento do extraordinário. O Ministério Público do Estado de Santa Catarina propôs o controle abstrato do art. 64, caput e parágrafo único, da LC n. 81/2001, do município de Florianópolis. Arguiu a impossibilidade de ser mantida ou prorrogada a vigência de autorizações e permissões para exploração do serviço de táxi sem a prévia realização de licitação. Esta a redação do dispositivo impugnado: Art. 64 As atuais autorizações e/ou permissões que estiveram com o prazo vencido e aquelas que estiverem em vigor por prazo indeterminado, inclusive por força de legislação anterior, serão mantidas pelo prazo de 15 (quinze) anos a contar da data da presente Lei. Parágrafo único. O Contrato de Adesão de Permissão assegurará o direito de prorrogação por igual período, nos termos do 5º,

2 do art. 4º, desta Lei, desde que observadas e cumpridas as exigências nela prescritas. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina julgou a ação procedente, em decisão assim resumida: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Incompetência do Tribunal de Justiça Estadual. Prefacial rechaçada. Lei n. 085/2001 do Município de Florianópolis. Serviço de Táxi. Manutenção e prorrogação das autorizações e/ou permissões atuais. Violação à exigência constitucional de prévia licitação pública. Afronta ao artigo 137 da Constituição Estadual. Inconstitucionalidade reconhecida. Ação procedente. Compete ao Tribunal de Justiça Estadual processar e julgar a ação direta de inconstitucionalidade contra lei ou ato normativo municipal, ainda que o texto da Constituição Estadual violado reproduza expressamente preceito da Carta Federal. Afronta a exigência constitucional de prévia licitação a lei que permite a manutenção e prorrogação de autorizações e permissões para exploração do serviço de táxi sem que se realize o devido certame licitatório. No mesmo acórdão, o Tribunal de Justiça modulou a decisão para surtir efeito após seis meses do trânsito em julgado, bem como fixou multa, a ser paga pelo Prefeito Municipal, no caso de atraso no cumprimento do julgado. Seguiram-se recursos extraordinários interpostos pelo Município e pelo Prefeito, assim como pelo Sindicato dos Condutores Autônomos de Veículos Rodoviários de Florianópolis. O recurso interposto em comum pelo Município e pelo Prefeito aponta ofensa aos arts. 2º, 5º, 37 e 175, da CF. Recorda que o Supremo Tribunal Federal, no RE n /RJ, decidiu que o serviço de táxi constitui atividade privada de interesse público, e, não, serviço próprio da Administração Pública. Por esse motivo, alega ser descabida a exigência de licitação para a seleção de taxistas. Argumenta, também, que o ato administrativo de autorização tem caráter discricionário e precário, circunstância suficiente para afastar as ofensas à isonomia e à moralidade administrativa vistas pelo acórdão recorrido. Advoga 2

3 que a fixação de prazo para a realização de licitação pública viola o princípio da separação do Poderes. O extraordinário interposto pelo Sindicato dos Condutores Autônomos repisa os fundamentos do outro recurso. Sustenta, ainda, não ser cabível ação direta de inconstitucionalidade contra lei de efeitos concretos. O recurso extraordinário do Município e do Prefeito foi admitido na origem, sorte diferente do interposto pelo Sindicato, que teve o seu trâmite obstado, por falta de legitimidade recursal, uma vez que não compôs originariamente a lide. Seguiu-se agravo, insistindo na legitimidade recursal do Sindicato, sustentando que seu interesse somente surgiu após a declaração de inconstitucionalidade pelo Tribunal de Justiça. O agravo subsequente foi conhecido pelo Ministro relator, para negar seguimento ao recurso extraordinário. Lê-se na decisão: (...) Inicialmente, observo, no caso, que o Tribunal de origem decidiu a controvérsia sobre a necessidade de licitação para a exploração de serviço público com base na interpretação e na aplicação da Lei n. 35/2001 do Município de Florianópolis. Para se concluir de forma diversa do que decidido pelo acórdão recorrido seria necessária a análise prévia dessa legislação infraconstitucional, o que não viabiliza o processamento do recurso extraordinário. ( ) Além disso, verifico que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de que, nos termos do artigo 175, caput, da Constituição Federal, é imprescindível prévia licitação para a concessão ou permissão da exploração de serviços públicos. (...) O agravo regimental insiste na abertura da instância extraordinária, porque caracterizada a ofensa direta aos dispositivos da Constituição Federal e uma vez que os precedentes a que a decisão recorrida se reportou aludem a serviços públicos em geral, e, não, especificamente, ao serviço de táxi. Reafirma que a decisão recorrida diverge do entendimento assentado no RE n /RJ. 3

4 - II - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal assentou o paralelismo da legitimidade para recorrer, no âmbito do processo abstrato de constitucionalidade, com a legitimidade ativa para a propositura dessas ações: Ação direta de inconstitucionalidade. Ilegitimidade recursal do Estado-membro nas ações de controle concentrado de constitucionalidade. Agravo não provido. 1. A teor da jurisprudência da Corte, a legitimidade recursal no controle concentrado é paralela à legitimidade processual ativa, não se conferindo ao ente político a prerrogativa de recorrer das decisões tomadas pela Corte em sede de ação direta, seja de modo singular (art. 4º, parágrafo único, da Lei nº 9.868/99) seja colegiadamente (art. 26 da mesma legislação). ( ) (ADI n AgR-AgR/AL, Rel. Ministro Dias Toffoli, DJe , grifos acrescidos). Os sindicatos têm legitimidade para propor ação direta de inconstitucionalidade contra leis municipais, conforme admitido pelo próprio Tribunal de Justiça, no decisório em que trancou o recurso extraordinário. Sendo esse o caso, não há por que lhe recusar legitimidade para recorrer ao STF. É irrelevante a circunstância de não haver participado das etapas anteriores da ação de fiscalização abstrata. Os propósitos que animam o processo objetivo do controle abstrato e que qualificam como política a legitimidade para agir dos entes escolhidos pelo constituinte para proteger a ordem constitucional não justificam o obstáculo arguido. Não se põe em questão nos autos, vale ressaltar, a legitimidade do Prefeito de Florianópolis para o recurso extraordinário, em harmonia com a inteligência dessa Casa a respeito (cf. RE n AgR/SP, Rel. Ministro Celso de Mello, DJe ). Por outro lado, o argumento da impossibilidade de controle abstrato de constitucionalidade de normas de efeito concreto escapa à revisão do STF, por falta de prequestionamento. 4

5 Quanto ao mérito, a controvérsia se resume a descobrir se a Constituição Federal exige licitação para a seleção dos prestadores de serviços de táxi. Para o Ministério Público de Santa Catarina, a falta de licitação viola o art. 137 da Constituição Estadual, dispositivo que guarda obrigatória simetria com o art. 175 da Constituição Federal. O ponto de vista que avançou, no sentido de o serviço em causa ser público e dependente de delegação da Administração Pública, encontrou acolhida no Tribunal de Justiça, que assim fundamentou a declaração de inconstitucionalidade: (...) Comentando o artigo 175, da Constituição Federal, do qual o dispositivo da Carta Estadual é simétrico, Celso Antônio Bandeira de Mello esclarece que 'concessão de serviço público é o instituto através do qual o Estado atribui o exercício de um serviço público a alguém que aceita prestá-lo em nome próprio, por sua conta e risco, nas condições fixadas e alteráveis unilateralmente pelo Poder Público, mas sob garantia contratual de um equilíbrio econômico-financeiro, remunerando-se pela própria exploração do serviço, em geral e basicamente mediante tarifas cobradas diretamente dos usuários do serviço' (Curso de direito administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros Editores, p. 696). Linhas após, destaca o doutrinador que 'a existência da pertinente autorização legislativa produzida nas distintas esferas competentes (federal, estadual, municipal e distrital), como é óbvio, não libera a Administração para escolher, a seu líbito, o concessionário que deseje. Deverá proceder a uma licitação a fim de que se apresentem os interessados, selecionando-se aquele que oferecer condições mais vantajosas. É o que, como já se disse, está expressamente previsto no dantes mencionado art. 175 da Constituição' (op. cit. p. 710). Na mesma direção, são as palavras de José dos Santos Carvalho Filho (...). Com efeito, a concessão ou delegação de atividade pública, como é o serviço de táxi, somente pode ser realizada por meio 5

6 de licitação, sob pena de infringência aos princípios da moralidade e igualdade. Vale acrescentar que o princípio da igualdade implica o dever não apenas de tratar isonomicamente todos os que afluírem ao certame, como também o de ensejar oportunidade de disputá-lo a quaisquer interessados que, desejando dele participar, podem oferecer as indispensáveis condições de garantia. O princípio da moralidade, por sua vez, significa que o procedimento licitatório deve desenrolar-se na conformidade de padrões éticos prezáveis, o que impõe, para Administração e licitantes, um comportamento escorreito, liso, honesto, de parte a parte (cf. Celso Antônio Bandeira de Mello. op. cit. p. 526 e 529). Ocorre que, embora a Constituição Estadual, seguindo os ditames da Carta Federal, exija para a delegação dos serviços públicos a prévia submissão ao processo licitatório, a lei municipal que trata do serviço de táxi no município de Florianópolis possibilita que as permissões e/ou autorizações que estiverem com prazo vencido e aquelas que estiverem em vigor por prazo indeterminado sejam mantidas pelo período de 15 (quinze) anos a contar da mencionada lei, o que vale dizer até o ano de 2016, bem como prorrogadas por igual prazo, conforme determina o parágrafo único do art. 64 da indigitada norma, ou seja, até o ano de 2031, sem que haja o devido processo licitatório. A norma em foco concede injustificado privilégio aos possuidores de permissões e/ou autorizações para exploração do serviço de táxi, violando a exigência constitucional de prévia licitação e ferindo os princípios da igualdade e da moralidade. Por certo, diante desse contexto, não resta dúvida de que o artigo 64, caput e parágrafo, da Lei Municipal n. 085/2001 padece de inconstitucionalidade. (...) Como apontado pelos recorrentes, a exata questão que se discute nestes autos foi analisada pelo Supremo Tribunal Federal no RE n /RJ (DJ ). Al, discutiu-se a constitucionalidade da Lei n /2000, do Município do Rio de Janeiro, que transformou, sem licitação, motoristas auxiliares de veículos de aluguel a taxímetro em permissionários autônomos. 6

7 Instado a se manifestar no citado recurso extraordinário, o à época Procurador-Geral da República Geraldo Brindeiro refutou os argumentos de ofensa aos princípios da igualdade, da impessoalidade e da exigência de licitação. Por seu vigor persuasivo, vale transcrever estas passagens do parecer: (...) 13. Quanto à alegação de violação ao art. 175 da Constituição Federal, não nos parece exigível o procedimento licitatório para a concessão de permissões aos taxistas, uma vez que o serviço de transporte executado por veículos de aluguel a taxímetro não constitui atividade própria da Administração, nem pede especialização na sua prestação ao público. 14. Apesar do nomen juris de permissão para o exercício da atividade, trata-se, na verdade, de autorização de serviço público. A Administração para autorizar a prestação de um serviço público não essencial, mas de interesse coletivo, como é o caso dos taxis, pode dispensar a licitação, uma vez que a Constituição Federal somente exige o procedimento licitatório para a delegação de serviços públicos a particulares quando sob o regime da permissão e concessão. (...) 16. O recorrente alega, ainda, a violação do Princípio da Isonomia (art. 5 o da CF/88) que, ao nosso sentir, somente teria sido violado se houvesse obrigatoriedade de licitação para a concessão das permissões aos taxistas. 17. Da mesma forma, também não nos parece violado o Princípio da Impessoalidade (art. 37 da Carta da República). Este princípio estaria relacionado com a finalidade pública que deve nortear toda a atividade administrativa. Significa que a Administração não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, uma vez que é sempre o interesse público que tem que nortear o seu comportamento (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo, 12 a ed., São Paulo: Atlas, 200, p. 71). Ao conceder a autorização aos auxiliares de taxistas do Rio de Janeiro, não entendemos que a lei tenha privilegiado arbitrariamente este grupo determinado de pessoas; o Administrador, no uso do poder discricionário inerente ao ato, determinou, segundo os critérios 7

8 estabelecidos, quais pessoas seriam beneficiadas. (...) (Parecer do Procurador-Geral da República no RE /RJ) Coincidindo com a visão do Chefe do Ministério Público Federal, o Ministro Carlos Velloso, relator, assinalou: (...) No que concerne à alegação de ofensa ao art. 175 da CF princípio da licitação convenceram-me os votos dos Ministros Jobim e Pertence, quando do julgamento da cautelar (acórdão às fls ), no sentido de que há, aqui, simples autorização ao invés de permissão, certo que a autorização não exige licitação. Também não há falar em ofensa aos princípios da isonomia e da impessoalidade (CF, arts. 5º e 37). É que a autorização, que deve ser pessoal e intransferível e que não exige licitação, assenta-se na discricionariedade administrativa e tem caráter precário. Embora a discussão nesse julgado tenha enfatizado o ângulo da arguida ofensa ao princípio da separação dos poderes, não houve divergência no tocante à desnecessidade de licitação para a prestação dos serviços de táxi. Alguns votos deixam isso claro, como se lê no do Ministro Nelson Jobim: O Ministro Relator afasta corretamente licitação e impessoalidade e passa pelo problema da separação de Poderes, (...) (grifei). O Ministro Cezar Peluso também ressaltou que a Administração Pública criou uma situação cuja natureza jurídica é de autorização, mas não lhe formalizou o reconhecimento (grifos acrescidos). Por fim, o voto da Ministra Ellen Gracie não deixou margem a dúvida: Sr. Presidente, com todas as vênias ao eminente Relator, também vou acompanhar a divergência. S. Exa afastou adequadamente as alegadas ofensas ao princípio da isonomia, também da licitação. Nota-se, portanto, que o Supremo Tribunal Federal já decidiu, por seu Plenário, que o ato que entrega a prestação do serviço de táxi ao interessado se reveste da natureza jurídica de autorização, não atraindo a exigência da licitação prevista no art. 175 da CF. Como o Tribunal de Justiça de Santa Catarina adotou 8

9 tese oposta, o parecer sugere o provimento do agravo e dos recursos extraordinários. Brasília, 8 de maio de Paulo Gustavo Gonet Branco Subprocurador-Geral da República 9