As forças que mantêm a coesão de uma pilha de grãos são as forças repulsivas de compressão e as forças de atrito estático tangencial.

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1 2 Grãos e Estática 2.1 Definições Básicas Grãos são corpos sólidos, capazes de oferecer resistência mecânica a forças externas. Para fins práticos, o tamanho dos grãos pode variar de frações de milímetro até centenas de metros de extensão (caso de asteróides em órbita solar). As características principais de um grão são o número elevado de átomos que o constituem, forma e tamanho irregulares, fricção de superfície, inelasticidade durante colisões e resistência à compressão e ao cisalhamento. Figura 1: Mesmos grãos, diferentes volumes ocupados [6]. Como os grãos têm as formas as mais variadas, o arranjo global depende de como os grãos estão arrumados em seu interior. As forças que mantêm a coesão de uma pilha de grãos são as forças repulsivas de compressão e as forças de atrito estático tangencial. 2.2 Pilhas de Grãos Pilhas de grãos estáticos são sistemas intrinsecamente aleatórios: a distribuição de contatos, e forças entre esses contatos, é extremamente complexa. Um exemplo da dificuldade de se determinar as forças entre grãos vem do problema aparentemente simples ilustrado na figura 2. A determinação das forças de atrito agindo sobre o sólido é impossível sem sabermos detalhadamente a deformação microscópica no objeto. Portanto, quando um sistema envolve um grande número de partículas que possuem contatos estáticos distribuídos aleatoriamente, não é possível determinar apenas pela localização de cada grão as forças que agem sobre os mesmos. 4

2 Figura 2: Problema insolúvel: determinar as forças de atrito e normais quando corpo está em equilíbrio (infinitas possíveis soluções). Outro fator complicador é o fato que a distribuição de forças não é uniforme (ver figura 3). Figura 3: Distribuição de forças não-homogênea para baixo. As forças acima também são impossíveis de determinar apenas por considerações de equilíbrio estático. Em uma pilha de grãos, as forças se transmitem em direções não verticais, de maneira não uniforme. A tendência é que as forças se transmitam para baixo ao longo de linhas onde as tensões compressivas são especialmente fortes. Estas linhas formam verdadeiros arcos. 2.3 Arcos A distribuição de forças dentro de um sistema de grãos é bastante irregular, como ilustrado na figura 4. Esta é a foto de um sistema de esferas de acrílico imersas em glicerina (os índices de refração são muito próximos fazendo com que as esferas se tornem quase invisíveis dentro da glicerina) [18]. O sistema todo é submetido a forte pressão vertical, o que ocasiona deformação e mudança do índice de refração do acrílico. Ilumina-se fortemente o sistema e o espalhamento é mais forte onde é maior a mudança do índice de refração, ou seja, nas regiões submetidas a maior pressão. Assim podemos observar as linhas de pressão internas do sistema. 5

3 Figura 4: Arcos de pressão em sistema de esferas de acrílico (ver texto) [18]. Estas linhas de pressão possuem similaridades com arcos arquitetônicos capazes de sustentar pesos elevados de modo eficaz, daí serem chamadas de arcos. Na figura 5 vemos um exemplo de arco formado por grãos. Figura 5: Arco simples. 2.4 Modelo Simples de Pilha de Grãos Um modelo simples de pilha de grãos é bastante instrutivo para entendermos como mesmo um sistema aparentemente simples de grãos pode ser extremamente complexo de analisar. Figura 6: Modelo bidimensional de balas de canhão. 6

4 Este modelo consiste de uma pilha bidimensional de grãos esféricos idênticos sem atrito de superfície ( balas de canhão, como na figura 6). Podemos observar que cada grão está aparentemente em contato com seis outros grãos: isto é o que chamamos de equilíbrio hiperestático. A razão é que, para um sistema bidimensional estar em equilíbrio, são necessários apenas dois contatos abaixo de seu centro de massa de modo que a projeção vertical deste fique entre os dois pontos. Isto nos diz que dos seis contatos, até quatro deles podem ser inexistentes! O que será certamente verdade se os diâmetros das balas de canhão diferirem por algum valor, mesmo que a diferença seja mínima. Então, a geometria dos contatos será aleatória e extremamente não uniforme apesar do sistema parecer superficialmente ordenado. Disto decorre que a distribuição de estresses interna de uma pilha aparentemente regular será errática e aleatória. 2.5 Princípio da Dilatância de Reynolds Reynolds publicou uma observação em 1885 [19] de que um sistema de grãos compactado dentro de um invólucro flexível vê seu volume aumentar quando submetido a compressão externa. Em outras palavras, ao se aplicar uma força de compressão externa sobre o material, os grãos se afastam um dos outros para poderem se mover, diminuindo a densidade do sistema. A este fenômeno chamamos de dilatância. Um simples modelo bidimensional de quatro grãos ilustra as razões para isto (ver figura 7). Figura 7: Modelo simples para dilatância. Dada o comprimento vertical h V e o comprimento horizontal h H do paralelogramo da figura 7, a área do mesmo será S = ½ h V h H. Portanto, a área intersticial não ocupada pelos grãos será S t = S πr 2, pois as áreas dos círculos correspondem à área de um único circulo de raio R. A questão interessante é saber como a área S t varia com o ângulo θ, ou seja, com a compressão. Como as diagonais acima estão relacionadas por h V 2 + h H 2 = 16 R 2, obtemos que: 7

5 Portanto, se inicialmente as partículas do centro tocam uma na outra (h H = 2R), a área original será S t 0 = (π-2 3 ) R 2, e h V = 2 3 R. Quando comprimimos o sistema, reduzimos h V e aumentamos a área pois esta só começa a diminuir quando h H = h V. Neste caso o paralelogramo se torna um quadrado e h H = h V = R 2 / 2. Figura 8: Comportamento do modelo simples de grãos: densidade versus compressão. O comportamento de um sólido usual, que sempre encolhe com compressão também é mostrado. Vê-se na figura 8 que partindo do estado de menor área (estado fortemente compactado) e comprimindo o sólido na direção vertical (diminuindo h V e aumentando h H ), a área aumenta até um ponto de máximo. Até h H = R 2 / 2 o regime de dilatância de Reynolds se impõe. Para h H > R 2 / 2 o sistema volta a se comportar como um sólido usual, encolhendo sob compressão. A dilatância de Reynolds explica um fenômeno muito conhecido para quem freqüenta praias: quando uma pessoa caminha pela areia molhada nota-se que ao redor dos pés desta pessoa a areia está seca! E quando a pessoa retira seu pé a areia volta a ficar molhada! Agora a razão para isto fica clara: quando a pessoa comprime a areia compactada, a mesma se dilata, aumentando o volume intersticial, o que permite que a água seja drenada da superfície, tornando a mesma seca. Ao retirar a pressão externa, a areia volta a se compactar e expulsa a água novamente para cima, tornando molhada a superfície de areia. O comportamento não usual de sistemas granulares estáticos fica ainda mais em evidência quando se estuda o comportamento da pressão sobre o fundo de um silo. 2.6 Pressão em um Silo: Teoria de Janssen Para entender como a pressão se comporta em um sistema granular denso, faremos algumas considerações qualitativas, e quantitativas, a seguir. 8

6 2.6.1 Transmissão de Força via Arcos A figura 9 mostra a estrutura de forças que se desenvolve dentro de um silo mais alto do que largo. O diagrama mostra que linhas de força não verticais, causadas pela distribuição da carga de estresse nos contatos entre os grãos do sistema, levarão a carga de pressão para as paredes do silo. Devido à compressão lateral e ao atrito entre os grãos e a parede, forças de atrito estático verticais vão se desenvolver e sustentar a maior parte do peso dos grãos dentro do silo. Figura 9: diagrama esquemático dos arcos de força dentro de um silo. As setas apontam na direção das forças de atrito estático entre os grãos e a parede do silo Relação entre Estresses e Tensões na Pilha de Grãos Para um sólido homogêneo, a variação da energia livre devido ao trabalho durante uma deformação pode ser escrita como um escalar, contração de dois tensores simétricos: uma força (ou pressão) generalizada σ ij e um deslocamento (ou deformação) u ij generalizado (i,j=x,y,z). Isto toma a forma: δf = - σ ij δ u ij. O tensor de deformação u ij corresponde à variação relativa onde u i é o vetor deslocamento de um ponto do corpo em relação a seu ponto de equilíbrio, sem estresses externos. O tensor de estresse σ ij corresponde à força por unidade de área na direção i ao longo da superfície perpendicular à direção j. As componentes diagonais σ xx, σ yy e σ zz correspondem à pressão normal sobre as superfícies perpendiculares a x, y e z respectivamente. A figura 10 ilustra como a direção destas forças está relacionada à área de aplicação. A aplicação de estresses sobre um objeto sólido leva o mesmo a se deformar. Na figura 11 vemos como um cilindro se deforma ao aplicarmos uma tensão constante para esticá-lo. A área transversal (e os comprimentos transversais) encolhe. Neste caso o estresse ao longo 9

7 do cilindro é constante e a componente u zz do tensor de deformação vale (ver figura 11) u zz = L / L. Figura 10: Direção da força devido ao estresse σ ij sobre a área perpendicular a ĵ. Duas quantidades importantes podem ser então definidas: o módulo de Young, Y, e o raio de Poisson, σ. O módulo de Young mede a rigidez elástica do material: Y = (4 F L) / (π d 2 L). O coeficiente de Poisson mede a razão entre as deformações longitudinais e laterais: σ = - u xx / u zz = -( d /d) / ( L / L). Devido à estabilidade termodinâmica do material devemos ter [20] 1 < σ ½. Figura 11: Ao ser submetido à tensão, o cilindro estica em uma direção e encolhe nas direções ortogonais. O comprimento passa de L a L+ L e o diâmetro de d a d+ d ( d < 0). Contudo, um sistema de grãos está longe de ser homogêneo: de fato, uma pilha de grãos é extremamente anisotrópica. Além disto, as deformações que ocorrem (fraturas, deslocamentos de conjuntos de grãos em relação a outros) absorvem energia e são plásticas (os grãos não voltam à posição original quando a perturbação externa cessa). Assim, os valores que estes coeficientes elásticos possam vir ter, para um sistema de grãos, não necessariamente obedecerão aos mesmos limites que no caso de um sólido isotrópico. 10

8 Isto fica claro no caso do coeficiente de Poisson σ. No caso do modelo simples de quatro grãos, temos h 2 V + h 2 H = 16 R 2 o que dá h V dh V + h H dh H = 0. Então, podemos definir o coeficiente de Poisson como: σ = - (dh V / h V ) / (d h H / h H ) = (h V / h H ) 2. O valor de σ pode ser até de 3.0 em nosso modelo. A variação da área intersticial pode ser escrita como ds t = ½ (h V dh H + h H dh V ) = ½ h H dh V (1-σ). No pondo de máxima S t, temos que ds t = 0 e σ = 1. Este ultimo resultado representa deformações iguais nas direções ortogonais. Para σ < 1 o regime volta a ser o usual, e não mais o de dilatância Modelo de Janssen O modelo proposto por Janssen em 1885 [16] descreve de maneira razoável a distribuição media de estresses ao longo de um sistema de grãos. O modelo pode ser resumido da seguinte maneira: O meio é tratado como se fosse continuo, apesar das características granulares do mesmo (isto torna possível escrever equações diferenciais para tratar o mesmo); Uma força vertical aplicada p V (ou estresse) automaticamente gera uma força horizontal p H (ou estresse) tal que p H = K p V, onde K é uma constante, chamada de coeficiente de redirecionamento para a parede. Neste ponto o recipiente é fundamental, pois é a sua deformação devido aos estresses aplicados pelo sistema que geram um Módulo de Young efetivo para o material granular; Após o assentamento do material, as forças de atrito agindo na interface dos grãos com as paredes do silo estarão no limiar do atrito estático (coeficiente µ S ). Esta aproximação será valida somente quando o numero de partículas for grande o suficiente já que a menor escala do sistema corresponde ao tamanho de um grão e este deve ser muito menor que o tamanho da pilha para que faça sentido a derivação de uma teoria continua como proposta. Figura 12: Diagrama esquemático de silo com pressão p V agindo no elemento de sistema. Onde ρ é a densidade do material, P é o perímetro do cilindro e S é a área transversal do mesmo. Definindo α = Kµ S P / S, podemos escrever: dp V / dh + α p V = ρg. 11

9 A figura 12 descreve a aplicação da teoria de Janssen para um silo cilíndrico. Para o elemento de sistema cilíndrico, a condição de equilíbrio implica: Sdp V +Kµ S p V Pdh = ρg Sdh, A solução é dada por p V e αh = ρg e αh + C. Dado que p V (h=0) = p V0, temos p V (h) = ρg (1 - e -αh )/α + p V0 e -αh. A forma desta solução está dada na figura 13. Figura 13: Pressão como função da profundidade h em silo. Para pequenas profundidades o regime é hidrostático (proporcional a h) e para grandes profundidades a pressão satura em um valor constante. Na realidade, a pressão é apenas aproximadamente constante em um dado nível profundo dado que ela flutua bastante devido às irregularidades do material. 2.7 Exercício Considere o silo da figura 14. Ele é feito de paredes rugosas como uma escada. a) Calcule θ em função de H, S 1 e S 2. b) Calcule a forma como a pressão varia em função da profundidade h (0 h H), S 1, S 2, g, K, ρ, e µ S. Figura 14 12