A impossibilidade subjetiva das prestações fungíveis e o dever de substituição do devedor * 1

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1 A impossibilidade subjetiva das prestações fungíveis e o dever de substituição do devedor * 1 DR.ª JOANA MACEDO VITORINO Sumário: 1. Introdução e delimitação do tema. 2. Coordenadas gerais; a impossibilidade (subjetiva) e a fungibilidade das prestações. 3. O efeito exoneratório da impossibilidade subjetiva à luz do artigo 791.º do Código Civil: 3.1. A divergência doutrinária; 3.2. A relativização da impossibilidade subjetiva? 3.3. Contributo da discussão em torno do conceito de prestação para a resolução do problema da existência de um dever de substituição? 3.4. Posição adotada. 4. Conclusão. Bibliografia 1. Introdução e delimitação do tema O direito positivo português (ainda) não acompanhou as grandes reformas ao direito das obrigações, particularmente ao direito do não cumprimento, enveredadas por outros países nos últimos vinte anos, como a alemã de 2001/02 ou, mais recentemente, a francesa de O conhecimento jurídico-científico não está alheio, porém, a tais desenvolvimentos e permite dar um novo enquadramento aos problemas de sempre suscitados pelo não cumprimento das obrigações. O presente estudo aborda apenas uma pequena gota no oceano das problemáticas que se inserem nesse contexto: a ocorrência de uma situação de impossibilidade subjetiva da prestação fungível. Importa-nos indagar das con- * O presente estudo corresponde essencialmente ao relatório elaborado no âmbito da disciplina de Direito Civil do Doutoramento em Ciências Jurídico-Civis da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (ano letivo 2016/2017), sob a regência do Professor Doutor António Menezes Cordeiro e Professora Doutora Maria Raquel Rei, a quem agradeço os comentários e sugestões tão certeiros no que respeita às questões mais delicadas do tema em estudo. Um agradecimento especial é devido à Beatriz Macedo Vitorino pela empenhada revisão do texto. Book Revista de Direito Civil - 2 (2018).indb /06/18 10:01

2 388 Joana Macedo Vitorino sequências dessa perturbação da prestação no programa obrigacional, mais concretamente, determinar se o devedor fica ou não (sempre) vinculado a fazer-se substituir na realização da prestação por terceiro. Fora do âmbito deste estudo ficam, portanto, questões conexas com esta problemática, mas sobre as quais não caberia aqui discorrer, tais como as consequências da nossa proposta de solução a nível do destino da contraprestação ou a interferência do tema do risco nesta matéria. Eventuais referências a essas temáticas serão feitas, portanto, a título meramente incidental, sem pretensão de aprofundamento e, muito menos, de resolver os problemas por elas suscitados. Depois de uma abordagem inicial em que daremos nota de alguns pontos prévios e noções que reputamos essenciais para a compreensão da problemática em causa nesta investigação e, sobretudo, para o seu enquadramento, entraremos no capítulo dedicado à busca de uma resposta para o problema acima identificado, no seio da qual desempenhará, como seria expectável, um papel central o artigo 791.º do Código Civil, devido à sua potencial eficácia exoneratória. 2. Coordenadas gerais; a impossibilidade (subjetiva) e a fungibilidade das prestações I. Perante o não cumprimento da obrigação, surge a necessidade de determinar quais os meios de reação à disposição do credor e quais os meios de defesa do devedor ( remedies na terminologia anglo-americana), quer quanto à exigibilidade judicial do cumprimento (execução específica/ação de cumprimento), quer quanto à exigibilidade de indemnização, seja ela in natura ou pecuniária (ação de responsabilidade civil obrigacional). Como é bom de ver, não se pretende abordar a viabilidade de tais meios de reação e defesa senão nos casos de impossibilidade subjetiva de prestações fungíveis. No fundo, duas questões-chave assumem um natural papel orientador na nossa investigação: a delimitação de tais casos (quando se poderá afirmar existir uma situação de prestação fungível subjetivamente impossível?) e as consequências jurídicas daí advenientes. Não podemos, contudo, deixar de tocar em alguns pontos quanto à matéria do não cumprimento em geral e ao que hoje se chama o direito da perturbação das prestações 1, uma vez que se trata, afinal, do quadro geral 1 Que abarca, para além do incumprimento em sentido amplo (incluindo a impossibilidade), a culpa in contrahendo, a alteração das circunstâncias e ainda aspetos de outros institutos, como a resolução ou a denúncia (cf. Menezes Cordeiro, Da modernização no Direito Civil, I Aspetos gerais, Almedina, 2004, p. 100). Book Revista de Direito Civil - 2 (2018).indb /06/18 10:01

3 A impossibilidade subjetiva das prestações fungíveis e o dever de substituição do devedor 389 em que se insere o nosso tema e relativamente ao qual ventos de mudança há muito vêm soprando, levando a reformas de monta do direito das obrigações, designadamente na Alemanha (2001/02) e em França (2016). A expressão não cumprimento da obrigação foi utilizada em sentido lato, passível de abranger a inobservância de quaisquer elementos atinentes à posição do devedor 2, incluindo, portanto, o dever de prestar principal 3, (eventuais) deveres de prestar secundários e os deveres acessórios de conduta, todos parte de um todo complexo correspondente à obrigação 4. Este ponto é importante e assenta numa conquista indisputável da moderna civilística: a obrigação não é impossível, o cumprimento dos deveres de prestar nela integrados, maxime do dever de prestar principal, é que o é. Razão pela qual ela apenas é suscetível de extinguir o dever cujo cumprimento se encontra impossibilitado, e não a obrigação in totum, ainda que possa levar a outras modificações no conteúdo desta o que, aliás, acontecerá quase sempre, para não dizer sempre, designadamente através do surgimento de novos deveres acessórios (paradigmaticamente, o dever de avisar o credor da impossibilitação da prestação 5 ). 2 Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, IX, 3.ª edição, Almedina, 2017, p A inclusão da inobservância de qualquer dever integrado na relação obrigacional, independentemente de ser ou não imputável ao devedor no sentido de gerar responsabilidade civil, torna a expressão não cumprimento mais ampla do que o sentido naturalístico a que se reporta Menezes Leitã o, Direito das Obrigações, II, 11.ª edição, Almedina, 2017, p. 225, correspondente à não realização da prestação devida, ou [à] sua realização em termos que não correspondam à adequada satisfação do interesse do credor. Com efeito, esta última formulação parece deixar de fora as situações em que tenha havido violação de um dever lateral ou acessório de conduta fora do âmbito do chamado interesse de prestação, prosseguindo antes o interesse de proteção (segundo a terminologia de Heinrich Stoll, «Abschied von der Lehre von der positiven Vertragsverletzung», Archiv für die civilistische Praxis, 136 (1932), , sobretudo pp. 287 ss.), i.e. um dever que não seja de fomento ou de promoção do fim do contrato (Nuno Pinto Oliveira, «Os deveres acessórios 50 anos de pois», Revista de Direito Civil, Ano II (2017), n.º 2, , p. 242), mas sim que vise impedi[r] a verificação de consequências laterais indesejáveis, tutelando a integridade pessoal e patrimonial dos sujeitos da relação obrigacional (Carlos Mota Pinto, Cessão da posição contratual, Almedina, 2003 ( reimpr.), p. 375). Sobre estas duas linhas básicas de desenvolvimento dos deveres acessórios, v. Rui Ataíde, «Natureza e regime jurídico dos deveres acessórios de cond uta», Estudos Comemorativos dos Vinte Anos da Faculdade de Direito de Bissau, I, 2010, , pp Sempre que nos referirmos apenas a prestação ou dever de prestar estamos a pensar neste dever de prestar o dever de prestar principal. 4 Sobre a complexidade das obrigações, v. Me nezes Cordeiro, Da boa fé no Direito Civil, Almedina, 2015 (6.ª reimpr.), 22 e Tratado de Direito Civil, VI, 2.ª edição, Almedina, 2012, Dever expressamente consagrado no artigo (2) dos Princípios relativos aos Contratos Internacionais (Unidroit Principles 2010), disponíveis em english/principles/contracts/principles2010/integralversionprinciples2010-e.pdf, bem como no artigo 79 (4) da Convenção das Nações Unidas sobre a Venda Internacional de Mercadorias, disponível em Book Revista de Direito Civil - 2 (2018).indb /06/18 10:01

4 390 Joana Macedo Vitorino Tradicionalmente, dentro de tal conceito amplo de não cumprimento, distinguem-se várias modalidades, nomeadamente utilizando dois critérios: a sua causa, diferenciando-se os casos em que o não cumprimento se deve a facto do devedor e lhe é, por isso, imputável ou, pelo contrário, se deve a facto do credor, de terceiro, ou a circunstância fortuita ou de força maior; e os seus efeitos, distinguindo-se não cumprimento definitivo (o não cumprimento stricto sensu), mora ou incumprimento temporário e cumprimento defeituoso 6. O tipo de meios de reação acessíveis ao credor variaria, logicamente e face à arrumação da matéria do Código Civil 7, consoante a modalidade de não cumprimento perpetrada pelo devedor 8. Contudo, para além das dificuldades em discernir, nalguns casos, perante que modalidade de não cumprimento nos encontramos 9, aplicando-se, consoante a resposta, diferentes regimes, com esta abordagem surgem dúvidas a /sales/cisg/v cisg-e-book.pdf e no artigo 8:108 (3) dos Princípios de Direito Europeu dos Contratos, disponíveis em org/400200/_/pecl/ (todos em inglês). 6 Cf. Antunes Varela, Das obrigações em geral, II, 6.ª edição, Almedina, 1995, pp e Ribeir o de Faria, Direito das obrigações, II, Almedina, 1990, pp Para uma organização diferente da matéria, v. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, II, cit., pp. 225 ss., separando dois grandes blocos: não cumprimento temporário e definitivo (seja devido a impossibilidade ou não). 7 Que distingue a impossibilidade objetiva, subjetiva, temporária e parcial não imputável ao devedor (artigos 790.º ss.) da mora e da impossibilidade que lhe forem imputáveis (artigos 801.º a 808.º), para além de estabelecer uma regra geral de responsabilidade por incumprimento e de presunção de culpa do devedor (artigos 798.º e 799.º), regulando ainda a mora do credor (artigos 813.º a 816.º) e a fixação contratual dos direitos do credor (artigos 809.º a 812.º). Como se pode verificar, a impossibilidade tem um papel central na regulação desta matéria, ao passo que, por exemplo, o cumprimento defeituoso não vem regulado a não ser a propósito de alguns contratos em especial, como a compra e venda, ao contrário do proposto nos preparatórios do Código Civil por Vaz Serra, que distinguia três hipóteses de não cumprimento: impossibilidade por causa imputável ao devedor, cumprimento defeituoso ou imperfeito e mora do devedor («Impossibilidade superveniente e desaparecimento do interesse do credor casos de não cumprimento da obrigação», sep. do Boletim do Ministério da Justiça, 1955, n.ºs 46, 47 e 48, pp. 153 e ). 8 O mesmo ocorria no direito alemão pré-reforma de 2001/02, levada a cabo pela Lei para a modernização do Direito das Obrigações, de 29 de novembro de 2001, que o fez transitar de um esquema em que os meios de reação do credor dependiam do tipo de não cumprimento para um esquema em que as suas pretensões face ao inadimplemento dependem dos requisitos próprios de cada um dos meios de reação possíveis o chamado sistema de remédios com base nos anglo-americanos remedies (cf. Hans Schulte-Nö lke, The New German Law of Obligations: an Introduction, passim, disponível em V. também Reinhard Zimmermann, The New German Law of Obligations, Oxford University Press, 2010 (reimpr.), pp. 39 ss.. 9 Cf. Hans Schulte-Nölke, The New German Law..., cit., III, 1, exemplificando com a dificuldade em distinguir prestação defeituosa (cumprimento defeituoso) de algo que não se pode Book Revista de Direito Civil - 2 (2018).indb /06/18 10:01

5 A impossibilidade subjetiva das prestações fungíveis e o dever de substituição do devedor 391 propósito dos requisitos de pretensões tão fundamentais como o direito de resolução: se o cumprimento não for impossível, mas a não realização da prestação pelo devedor não puder, por outro motivo, considerar-se culposa, não haverá responsabilidade e concomitante indemnização 10, mas haverá direito de resolução do contrato do qual derivou a obrigação? 11 A referida abordagem de determinação dos meios de reação com base no tipo de não cumprimento segundo a ordenação dos artigos 790.º ss. do Código Civil (CC) 12 suscita ainda, e chegando agora a um aspeto que pretendíamos realçar desde cedo, uma confusão entre os planos do dever de prestar e do dever de indemnizar, para utilizar terminologia já conhecida a respeito desta contraposição 13, daí que se entendesse extinguir-se a obrigação por impossibilidade se esta não fosse imputável ao devedor, mantendo-se, pelo contrário, se este a tivesse causado. Aliás, o próprio entendimento de não cumprimento como não realização da prestação devida, sendo possível o seu cumprimento 14 parte já da ideia de que, sendo este impossível, não há verdadeiro incumprimento, apesar de poder, naturalmente, haver responsabilidade civil obrigacional se a causação da impossibilidade for imputável ao devedor mas apenas porque se equipararia esta impossibilidade imputável ao verdadeiro incumprimento (cf. o artigo 801.º, n.º 1, em que se utiliza a expressão típica das hipóteses de ficção legal como se ). Na realidade, porém, se o devedor, por dolo ou negligência, causou a impossibilidade da prestação a que estava adstrito, então houve violação culposa da obrigação e, consequentemente, incumprimento. E, paradoxalmente, é a propósito desse incumprimento supostamente ficto que se prevê uma das consequências fundamentais do regime geral do não cumprimento das obrigações: a atribuição à parte não identificar minimamente com a prestação, correspondendo a um verdadeiro alliud (não cumprimento stricto sensu). 10 Neste sentido, cf. Pessoa Jorge, Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, Almedina, 1995 (reimpr.), pp. 131 ss. e Inocêncio Galvão Telles, Direito das obrigações, 7.ª edição, Coimbra Editora, 2014 (reimpr.), pp Em sentido positivo, em virtude do caráter sinalagmático do direito à resolução (e não sancionatório), v. Baptista Machado, «Pressupostos da resolução por incumprimento», sep. do n.º especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 1979, p. 7; no mesmo sentido, quanto à ação de cumprimento (execução específica), v. Calvão da Silva, Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, 4.ª edição (reimpr.), Almedina, 2007, p Todas os artigos mencionados daqui para a frente sem indicação do diploma legal em que se inserem, pertencem ao Código Civil (CC). 13 Gomes da Silva, O dever de prestar e o dever de indemnizar, I, 1944, passim. 14 Eduardo Santos Júnior, «Da impossibilidade pessoal de cumprir. Breve confronto do novo Direito alemão com o Direito português», O Direito, Ano 142 (III), 2010, , p. 429 (itálicos nossos). Book Revista de Direito Civil - 2 (2018).indb /06/18 10:01

6 392 Joana Macedo Vitorino faltosa do direito de resolver o contrato sinalagmático que tenha sido violado (artigo 801.º, n.º 2). Por estes motivos, entre outros, designadamente a necessidade de transposição de Direito Europeu em matéria de Direito do Consumidor, se deu a grande viragem do direito alemão das obrigações no sentido de estabelecer a violação de um dever como conceito central no direito da perturbação das prestações 15, aproximando-o, assim, do direito anglo-americano e de instrumentos internacionais por este influenciados, como a Convenção das Nações Unidas sobre a Venda Internacional de Mercadorias (CNUVIM), os Princípios relativos aos Contratos Comerciais Internacionais (PCCI) e os Princípios de Direito Europeu dos Contratos (PDEC) 16. Ultrapassando-se, desta forma, a lacuna identificada por Staub dois anos após a entrada em vigor do Código Civil alemão (Bürgerliches Gesetzbuch BGB) relativa às situações que agrupou numa categoria que designou por violação positiva do contrato, que não correspondem exatamente às situações hoje enquadradas no âmbito da perturbação das prestações, mas cuja descoberta serviu para salientar aquilo que é incontestável: o devedor pode violar a sua obrigação, não apenas se omitir a realização da prestação, mas também por adotar outras condutas contrárias a esse vínculo, seja realizando a prestação defeituosamente, defraudando a confiança do credor, ou de outra forma 17. Também no direito francês se alterou de forma considerável o sistema do Código Civil quanto à inexecução do contrato, que passou a corresponder a um sistema de remédios (ou sanções à inexecução, como lhes chamou o legislador na exposição de motivos da Ordonnance que aprovou a reforma de ), listados no novo artigo 1217 e regulados, um por um, nos artigos seguintes, arrumando uma matéria que antes estava dispersa pelo Código. Não tendo o legislador nacional procedido a uma reforma semelhante, nem estando uma em preparação, compete à doutrina arrumar matérias e clarificar 15 Sobre isto, v. Menezes Cordeiro, Da modernização..., cit., pp Cf. Peter Schlechtriem, The German Act to Modernize the Law of Obligations in the Context of Common Principles and Structures of the Law of Obligations in Europe, 1., disponível em iuscomp.org, explicando que a violação de um dever consistirá em qualquer desvio ao programa obrigacional. 17 Sobre a violação positiva do contrato, v. Me nezes Cordeiro, «Violação positiva do contrato (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de janeiro de 1980)», Estudos de Direito Civil, I, Almedina, 1991 (reimpr.), , sobretudo pp. 130 ss.. 18 Cf. Nicolas Dissauz/Christophe Jamin, Réforme du droit des contrats, du regime général et de la preuve des obligations, Dalloz, 2016, p A reforma de 2016 ou Reforma do direito dos contratos, do regime geral e da prova das obrigações foi aprovada pela Ordonnance n.º , de 10 de fevereiro de Book Revista de Direito Civil - 2 (2018).indb /06/18 10:01

7 A impossibilidade subjetiva das prestações fungíveis e o dever de substituição do devedor 393 soluções que a sistemática baseada nas modalidades de não cumprimento rectius, em algumas dessas modalidades deixa pouco claras, de forma a evitar potenciais contradições no sistema. A matéria que nos ocupa aqui, veremos, é um bom exemplo das dificuldades geradas pelo sistema do não cumprimento das obrigações tal como consagrado no Código Civil. II. Assentemos, a título preliminar, algumas ideias básicas sobre a impossibilidade (subjetiva), bem como a fungibilidade das prestações e seu cumprimento por terceiro. É impossível a prestação que não possa ser realizada, independentemente da vontade do devedor 19. Decorre da lógica e da moderna filosofia moral que dever implica poder 20, pelo que ninguém deveria poder vincular-se ou permanecer vinculado a uma conduta que lhe seja impossível. Esta asserção fundamental, tão simples quanto afirmar que a prestação consistente em remover a lua ou em atuar ao vivo em dois lugares diversos simultaneamente é impossível 21, não evita que logo nos deparemos com dificuldades: desde logo, e com relevância direta no nosso tema, aquilo que é impossível para uns, não será necessariamente impossível para todos. Procede-se, portanto, a várias distinções, a partir de classificações com vista a determinar em que termos e circunstâncias será a impossibilidade relevante, à luz dos regimes diferenciados que a lei consagra. A impossibilidade pode ser inicial ou superveniente, consoante se verifique no momento da conclusão do negócio ou apenas posteriormente. A impossibilidade superveniente, que aqui nos interessa, releva no âmbito do regime do não cumprimento da obrigação, enquanto a inicial, estabelecem os artigos 280.º/1 e 401.º/1, conduz à nulidade da obrigação (rectius, do dever de prestar 22 ) baseia-se esta última solução na doutrina de Friedrich Mommsen, que passou para o BGB, onde se restringia, no 307, a indemnização do credor ao interesse contratual negativo em caso de obrigação inicialmente impossível e, 19 Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, IX, cit., p Reinhard Zimmermann, The Law of obligations: Roman foundations of the civilian tradition, Juta & Co, Ltd, 1992 (reimpr.), p Pais de Vasconcelos fala em contrariedade à Natureza a propósito da impossibilidade do objeto do negócio jurídico: Naturalmente impossível é tudo o que as pessoas não consigam fazer, mesmo que o queiram, (...) é tudo aquilo que as forças humanas de modo nenhum podem conseguir. Só existe o dever enquanto subsiste a possibilidade de cumprir: o impossível e o inelutável excluem o dever. (Teoria geral do Direito Civil, 8.ª edição, 2015, Almedina, p. 516). 21 Exemplos de Oliveira Ascensão, Direito Civil Teoria geral, II, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2003, p Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, IX, cit., p Book Revista de Direito Civil - 2 (2018).indb /06/18 10:01

8 394 Joana Macedo Vitorino por isso, nula à luz do 306. Como já referido, apenas a impossibilidade superveniente nos interessa nesta investigação. Outra classificação assenta num critério temporário, atenuado pela consideração do interesse do credor, distinguindo impossibilidade definitiva e temporária. Se o obstáculo que impede a realização da prestação for momentâneo, será temporária, aplicando-se o artigo 401.º/2 no caso de ser inicial e o artigo 792.º no caso de ser superveniente e não imputável ao devedor (sendo-lhe imputável, aplicam-se as regras gerais relativas à mora debitoris, incluindo a regra de equiparação ao não cumprimento definitivo se houver perda do interesse do credor artigo 808.º); se não for possível o desaparecimento do obstáculo, será definitiva, aplicando-se as regras mencionadas no parágrafo precedente. A impossibilidade pode ser total ou parcial, conforme incida sobre a globalidade ou apenas uma parcela da prestação. No caso de impossibilidade parcial imputável ao devedor, o credor pode, em princípio, resolver o negócio de onde a obrigação resulta, não tendo esse direito apenas se se demonstrar que a parte da prestação não cumprida era de escassa importância face ao seu interesse (artigo 802.º). Ao invés, não sendo a impossibilidade imputável ao devedor, o credor tem apenas direito a ver a sua contraprestação reduzida, no caso de a obrigação derivar de contrato sinalagmático, e só demonstrando que não tem interesse no cumprimento parcial poderá resolver o negócio (artigo 793.º). Mais uma vez, a viabilidade da satisfação do interesse do credor, correspondente ao escopo da obrigação 23, joga um papel fundamental 24. A prestação será física ou faticamente impossível se a sua realização for inviável à luz das leis da natureza e do estado atual das capacidades humanas técnico-científicas, como a obrigação de entregar uma coisa que se destruiu. Se o impedimento resultar, não do foro naturalístico, mas antes da inviabilidade jurídica da constituição ou manutenção da obrigação, como nas hipóteses de venda de coisa fora do comércio: a coisa existe e não está fora do alcance das pessoas, mas não é passível de ser transmitida, nem entregue, por razões jurídicas 25. Uma hipótese de impossibilidade jurídica subjetiva é a de promessa de 23 Cf., por todos, Calvão da Silva, Cumprimento e sanção..., cit., pp. 61 ss. 24 A este respeito, escreve Catarina Monteiro Pires: o interesse do credor é sempre a bússola que norteia o destino do dever de prestar, sendo à luz do fim ou do plano de emprego da prestação que o credor deve analisar se tem, ou não, interesse em receber a prestação parcial. (Impossibil idade da prestação, Almedina, 2017, pp ). 25 A nossa jurisprudência tem tratado de múltiplos casos em que o objeto (mediato) do negócio não pode ser transmitido, seja por falta de alguma licença ou autorização, seja por se tratar de imóvel integrado em área de afetação específica, considerando-as como hipóteses de impossibilidade jurídica (ou legal, terminologia mais utilizada nos tribunais). Cf., a título de exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de , proc. 62/11 (Relator: Lopes do Rego): Book Revista de Direito Civil - 2 (2018).indb /06/18 10:01

9 A impossibilidade subjetiva das prestações fungíveis e o dever de substituição do devedor 395 venda de coisa alheia ou que se tenha tornado alheia após a conclusão do negócio, se, no momento do vencimento, o promitente-vendedor ainda não tiver (re-)adquirido a respetiva propriedade, pois a coisa existe e pode ser vendida pelo seu proprietário, mas não pelo devedor/promitente-vendedor, a quem falta legitimidade para o fazer. Esta distinção, ao contrário das demais, não implica nenhuma diferenciação de regimes: quer a impossibilidade física, quer a jurídica são relevantes desde que o sejam em face das outras classificações e nos respetivos termos. Distingue-se entre impossibilidade absoluta e relativa, consoante a prestação seja efetivamente impossível ou (apenas) extremamente difícil (diffi cultas praestandi). Usualmente, afirma-se que apenas a impossibilidade absoluta será verdadeira impossibilidade, só ela tendo relevância enquanto tal, não se aplicando, por conseguinte, o regime da impossibilidade quando seja meramente relativa. Uma vez que iremos abordar com maior profundidade a impossibilidade relativa em capítulo autónomo, dada a alegada proximidade entre esta e a impossibilidade subjetiva, dispensamo-nos de aqui lhe dedicar mais atenção. Finalmente, fala-se em impossibilidade objetiva quando ela atinja o próprio objeto do negócio, de tal modo que ninguém possa prestar 26 e em subjetiva quando se reporte à pessoa do devedor, ainda que a realização da prestação se possa manter ao alcance de outros. Esta é a forma habitual de definir impossibilidade subjetiva. Paulo Cunha, porém, definia a impossibilidade objetiva como um impedimento que qualquer pessoa colocada na situação do devedor também não conseguiria cumprir e afirmava haver impossibilidade subjetiva nos casos em que o devedor realmente não pode cumprir mas onde devedor estava em causa um contrato-promessa de compra e venda de terreno cuja desafetação à Reserva Agrícola Nacional não foi autorizada; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de , proc. 9647/03 (Relator: Moreira Alves): impossibilidade legal resultante do regime jurídico da urbanização e edificação, uma vez que a fração prometida vender não podia ser destinada à atividade de restauração por essa não corresponder à finalidade licenciada pela Câmara Municipal. Alguma controvérsia surgiu sobre se deveria restringir-se os casos de objeto negocial juridicamente impossível quando este correspondesse a realidades de caráter jurídico, p. ex. negócios jurídicos e direitos (Carlos Mota Pinto, Teoria geral do Direito Civil, 4.ª edição (2.ª reimpr.), Coimbra Editora, 2012, p. 556), chegando a limitar-se às hipóteses em que o objeto consistia na celebração de outro negócio (cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de , proc [Relator: Fernandes Fugas]). Rejeitando esta restrição, referindo, precisamente, a venda de coisa fora do comércio como exemplo de objeto juridicamente impossível, v. Carvalho Fernandes, Teoria geral do Direito Civil, II, 5.ª edição, Universidade Católica Editora, 2014, p. 164). 26 Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, IX, cit., p O Autor utiliza preferencialmente o binómio impossibilidade absoluta/relativa para se referir à impossibilidade objetiva/subjetiva, reservando os termos efetiva/prática para se referir à impossibilidade absoluta/relativa. Book Revista de Direito Civil - 2 (2018).indb /06/18 10:01

10 396 Joana Macedo Vitorino diverso, já dotado de melhores meios ou faculdades, teria conseguido vencer o obstáculo 27. A variante tem implicações a nível das consequências jurídicas ao estender o âmbito de situações abrangidas pela impossibilidade objetiva. De acordo com a formulação tradicional, ou ninguém, pura e simplesmente, pode realizar a prestação caso em que se verifica a sua impossibilidade objetiva ou o devedor não pode cumprir e, por isso, há impossibilidade subjetiva, mas alguém pode cumprir, pelo que não haverá impossibilidade objetiva. Neste último caso, será indiferente que quem esteja em condições de poder cumprir, também não o conseguisse fazer se estivesse colocado na situação do devedor : o que importa é que a realização da prestação não é impossível para todas as pessoas. Porém, a definição de Paulo Cunha alberga uma nuance que permite entender verificar-se impossibilidade objetiva, ainda que haja pessoas com possibilidade de cumprir, desde que não o pudessem fazer, se tivessem, não as suas próprias condições e apetências, mas as do devedor, o que nos parece introduzir aqui uma nota de relevância quanto ao grau de diligência devida pelo devedor. Uma vez que a eficácia liberatória da impossibilidade objetiva atua de forma mais imediata sem os condicionalismos do artigo 791.º (compare-se com o n.º 1 do artigo 790.º) 28, facilitar-se-ia, por esta via, a liberação do devedor face ao dever de prestar através da consideração de fatores normalmente equacionados a propósito da discussão sobre a impossibilidade relativa. Para o Autor, no entanto, a questão não tinha muita relevância, pois entendia note-se: à luz do Código Civil de 1867 que tanto a impossibilidade objetiva, como a subjetiva, liberavam, sem mais, o devedor 29. Pelo contrário, a doutrina maioritária posterior ao Código Civil de 1966 entende que a impossibilidade subjetiva apenas faz extinguir o dever de prestar se a prestação correspondente for não fungível, devendo o devedor fazer-se substituir por outrem 27 Estas definições podem encontrar-se no acórdão do tribunal arbitral de relatado por Paulo Cunha («Ar bitragem entre o Arsenal do Alfeite e a União Eléctrica Portuguesa», O Direito, tomo 77 (1945), , e , p. 251). 28 Catarina Monteiro Pires escreve mesmo que a impossibilidade subjetiva consiste numa causa limitada de bloqueio da pretensão primária de cumprimento (i.e. de exigibilidade do cumprimento, mediante execução específica), pois apenas atuaria plenamente no caso de prestações não fungíveis, hipótese em que deveria equiparar-se à impossibilidade objetiva, produzindo os efeitos previstos no artigo 790.º, n.º 1, ao passo que, tratando-se de prestação fungível, perante uma situação de impossibilidade subjetiva, surgiria apenas a necessidade de o devedor se fazer substituir por terceiro no cumprimento e, não o podendo fazer, haveria, simplesmente, incumprimento, a aferir se culposo ou não (Impossibilidade... cit., pp. 306, ). 29 Cf. «Arbitragem...», cit., p Book Revista de Direito Civil - 2 (2018).indb /06/18 10:01

11 A impossibilidade subjetiva das prestações fungíveis e o dever de substituição do devedor 397 no cumprimento se ela for, ao invés, fungível, questão que está no centro deste estudo. III. O que entender, então, por (não) fungibilidade das prestações? Uma prestação diz-se fungível quando pode ser realizada por pessoas diferentes do devedor, sem prejuízo do interesse do credor 30. Será não fungível no caso contrário, ou seja, quando o cumprimento possa apenas ser realizado pelo devedor. Se a possibilidade de realização da prestação por terceiro tiver sido expressamente afastada por acordo entre credor e devedor, haverá não fungibilidade convencional; se não houver acordo nesse sentido, mas a realização da prestação por pessoa que não o devedor for contrária ao interesse do credor, haverá não fungibilidade natural: ambas as hipóteses vêm previstas no artigo 767.º/2 31. Assim, a regra quanto à legitimidade para o cumprimento é generosa 32 : fora os casos de não fungibilidade, natural ou convencional, qualquer um poderá realizá-la, tenha ou não interesse em fazê-lo 33 (artigo 767.º/1). 30 Antunes Varela, Das obrigações em geral, I, 8.ª edição, Almedina, 1994, p Cf. Menezes Leitão, Direito das obrigações, I, 14.ª edição, Almedina, 2017, p O Autor explica nesse local (nota 301) por que a (não) fungibilidade das prestações não pode ser confundida com a distinção entre coisas fungíveis e não fungíveis, consoante as coisas estiverem determinadas apenas por género, qualidade e quantidade ou individualizadas, respetivamente. Na verdade, a prestação de entrega de coisa (fungível ou não) será fungível, salvo acordo em contrário, pois, em princípio, não haverá prejuízo para o interesse do credor em recebê-la de terceiro. 32 Também o artigo do Código Civil francês consagra uma regra geral de legitimidade para o cumprimento, salvo recusa legítima do credor (por exemplo, fundada em acordo entre credor e devedor: este fundamento não é, contudo, aceite pela jurisprudência francesa, se o terceiro tiver interesse no cumprimento cf. Pascal Ancel, et al., Code Civil annoté, 116.ª edição, Dalloz, 2017, p. 1847), bem como o 267 do BGB, que afasta a necessidade de consentimento do devedor ao cumprimento por terceiro nas hipóteses em que a prestação não tenha de ser realizada pessoalmente por aquele. Sobre as diferenças na Common Law face a este princípio da indiferença da identidade de quem cumpre a prestação, v. Simon Whittaker, Perfor mance of Another s Obligation: French and English Law Contrasted, disponível em No âmbito da Common Law não pode, em princípio, um terceiro liberar o devedor da sua obrigação sem a autorização deste, mas é permitido ao credor providenciar pela realização da prestação por terceiro em caso de mora sem necessidade de recorrer ao tribunal (o que não era permitido pelo Código Civil francês antes da reforma de 2016, que revogou o antigo artigo 1144, onde se exigia decisão judicial para esse efeito, substituindo-o pelo novo artigo 1222, no qual se permite ao credor que faça executar ele mesmo a obrigação, após esperar um período adequado e não ultrapassando um custo razoável, podendo depois pedir o reembolso das despesas ao devedor cf. Thibault Douville, et al., La reforme du droit d es contrats Commentaire article par article, Gaulino, 2016, pp ). 33 Terá interesse, por exemplo, o sublocatário que paga a renda devida pelo locatário ao senhorio, de forma a evitar a resolução do contrato de arrendamento e, consequentemente, a caducidade do seu próprio contrato e subsequente despejo. Book Revista de Direito Civil - 2 (2018).indb /06/18 10:01

12 398 Joana Macedo Vitorino O facto de uma prestação ser fungível tem como consequência fundamental que o credor não pode recusar a sua realização por terceiro, sob pena de incorrer em mora creditoris (artigo 768.º/1), salvo se verificados os dois requisitos cumulativos do n.º 2 desse artigo: o devedor a tal se oponha e o terceiro não fique sub-rogado nos direitos do credor, nos termos do artigo 592.º, caso cumpra. Outros problemas são suscitados pelo cumprimento por terceiro, tais como a pretensão que o terceiro possa ter em virtude do cumprimento por si efetuado face ao devedor, seja com base no regime da sub-rogação legal, de algum negócio subjacente como o mandato, ou de institutos como a gestão de negócios ou o enriquecimento sem causa. Essa questão não tem aqui relevância. Mais relevante será indagar das implicações que a fungibilidade de uma prestação, associada à ampla legitimidade para o cumprimento, na determinação do conteúdo do direito de crédito e da correspondente obrigação. Com efeito, sendo a substituição do devedor permitida no âmbito das prestações fungíveis, sem que o credor possa recusar o cumprimento pelo terceiro, parece poder afirmar-se que o devedor terá a faculdade de se fazer substituir. É certo que a realização da prestação por terceiro pode ocorrer mesmo contra a vontade do devedor, dado que a sua objeção apenas permite ao credor a recusa da prestação oferecida por terceiro e nem isso, se o terceiro puder ficar sub- -rogado nos direitos do credor, nos termos do artigo 592.º. Contudo, tal não impede que se possa afirmar que o devedor atua ao abrigo de uma permissão de atuação quando providencia pela realização da prestação por terceiro. Na verdade, o devedor pode escolher entre prestar ele próprio ou fazer-se substituir, como pode escolher utilizar auxiliares no cumprimento ou não 34. Mas em que circunstâncias estará o devedor obrigado a fazer-se substituir? Naturalmente, esta última questão só se coloca perante prestações fungíveis cuja realização seja subjetivamente impossível: se o devedor pode cumprir por si próprio, não faz qualquer sentido considerá-lo adstrito ao dever de se fazer substituir por terceiro. Quando o devedor não pode realizar a prestação pessoalmente, surge a necessidade de saber se ele está adstrito a um dever de se fazer substituir ou não. Efetivamente, se um tal dever de substituição não existir, o cumprimento da prestação já não será exigível pelo credor, que perde, assim, a pretensão primária integrada no seu direito de crédito, apenas lhe restando pretensões secundárias, maxime a uma indemnização (seja em espécie, seja 34 Defende não consistir em verdadeiro cumprimento a realização da prestação por terceiro Calvão da Silva, Cumprimento e sanção..., cit., p. 86, nota 164, pelo facto de não estar o terceiro vinculado ao dever de prestar. Em sentido contrário, adotando um conceito amplo de cumprimento, v. Cunha de Sá, «Direito ao cumprimento e direito a cumprir», Revista de Direito e de Estudos Sociais, 1973, ano 20, n.ºs 2-3-4, , pp. 153 ss., sobretudo p Book Revista de Direito Civil - 2 (2018).indb /06/18 10:01

13 A impossibilidade subjetiva das prestações fungíveis e o dever de substituição do devedor 399 pecuniária). A análise do artigo 791.º desempenha um papel nuclear na resposta à questão sobre a extinção do dever de prestar subjacente a prestações fungíveis. 3. O efeito exoneratório da impossibilidade subjet iv a à luz do artigo 791.º do Código Civil 3.1. A divergência doutrinária I. A maioria da doutrina portuguesa pugna por uma correspondência entre impossibilidade subjetiva e infungibilidade da prestação no seio do artigo 791.º 35, com algumas atenuações. Assim, o efeito extintivo previsto nesse artigo apenas se produziria quando a prestação não fungível se tornasse subjetivamente impossível, já não se se tratasse de prestação fungível 36. E isto porque, embora a lei não diga expressis verbis que a impossibilidade relativa à pessoa do devedor só importa a extinção da obrigação, se o devedor, no cumprimento desta, não puder fazer-se substituir por terceiro 37, parece resultar da letra do artigo 791.º essa conclusão. 35 Catarina Monteiro Pires, Impossibilidade... cit., p. 320 (itálicos no original). Cf. também Al meida Costa, Direito das obrigações, 12.ª edição, Almedina, 2009, p. 698 e os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de , proc. 171/2002 (Relator: Moreira Alves) uma vez que o advogado se pode fazer substituir no cumprimento da sua obrigação, só a impossibilidade objectiva, desde que não imputável ao devedor, como é óbvio, exonera o devedor da obrigação contraída e de , proc. 442-G/1999 (Relator: Alves Velho) [t]endo a prestação natureza fungível, a mera impossibilidade subjectiva não constitui causa de extinção da obrigação. Consistindo a prestação devida na produção de um certo resultado no caso a edificação de um muro pela conjugação de meios dos vários obrigados, por isso vinculados aos inerentes deveres de colaboração e cooperação que a boa fé no cumprimento da obrigação postula, só a impossibilidade objectiva poderia extinguir o vínculo jurídico estabelecido (no sumário). 36 Por isso, afirma-se, às vezes, que, estando o devedor impossibilitado de realizar prestação não fungível, tratar-se-ia, na verdade, não de impossibilidade subjetiva, mas objetiva, uma vez que só o devedor podia cumprir e não pode fazê-lo (cf. Manuel de Andrade, Teoria geral das obrigações, I, Almedina, 1958, p. 406). Pessoa Jorge, Ensaio sobre os pressupostos... cit., p. 109, sustenta que, se o devedor, no caso de prestação fungível, não consegui[r] que ninguém realiz[e] o cumprimento em seu lugar, também haverá impossibilidade objetiva (ibid., p. 109). Esta identificação com a impossibilidade objetiva tem importância no seio da construção doutrinária de Pessoa Jorge sobre o artigo 791.º, de forma a concluir que certa interpretação que dele é feita deve ser considerada inútil ou incompreensível. 37 Nuno Pinto Oliveira, «Contributo para a modernização das disposições do Código Civil português sobre a impossibilidade da prestação», Estudos sobre o não cumprimento das obrigações, 2.ª edição, Almedina, 2009, 11-32, p. 27 (itálico no original). Book Revista de Direito Civil - 2 (2018).indb /06/18 10:01

14 400 Joana Macedo Vitorino Ora, os casos de prestação não fungível são precisamente casos em que o devedor não se pode fazer substituir, seja por isso ser contrário ao interesse do credor (não fungibilidade natural), seja por assim ter sido acordado (não fungibilidade convencional), como acima vimos. Indo um pouco mais além, parece resultar do teor literal do referido artigo que só se produz o efeito exoneratório quando o devedor esgotou as possibilidades de se fazer substituir no cumprimento, conforme admite Pessoa Jorge 38, apesar da sua posição em sentido contrário. Tudo está em saber, portanto, se o devedor de prestação fungível estará (sempre) obrigado a fazer-se substituir no caso de perder a sua capacidade para prestar pessoalmente 39, não se extinguindo, por isso, o seu dever de prestar em virtude de impossibilidade subjetiva. A legitimidade genérica para o cumprimento resultante do artigo 767.º/1 e a possibilidade de o credor requerer, em execução, que a prestação em falta seja realizada por terceiro à custa do devedor (artigo 828.º) são argumentos apontados em favor da referida tese maioritária 40. Se o credor, apesar da impossibilidade subjetiva, continua a poder fazer valer a pretensão primária ao cumprimento, através da realização da prestação por terceiro em execução específica, então não se poderia defender a extinção do dever de prestar. Podendo fazer-se substituir por terceiro, o devedor ainda pode prover pela satisfação do interesse do credor, assegurando o resultado da prestação 41. II. Sustenta posição diversa Pessoa Jorge. Para este Autor, a impossibilidade subjectiva só não ser[á] exoneratória quando, nos termos da própria obrigação, o devedor esteja vinculado ao dever de se fazer substituir por terceiro Pessoa Jorge, Ensaio sobre os pressupostos... cit., p Sobre a discussão doutrinária sobre se bastará a perda da capacidade para prestar ou se será necessária a insuscetibilidade da sua recuperação para que haja impossibilidade subjetiva, v. Catarina Monteiro Pires, Impossibilidade... cit., p Para os defensores da segunda posição não será preciso, contudo, que a recuperação seja impossível para haver impossibilidade subjetiva, bastando não ser exigível, face aos esforços a que o devedor estiver obrigado (diligência devida). Haverá diferença, numa perspetiva normativo-valorativa, entre a destruição da coisa que se deve entregar e o seu furto por ladrão com identidade e paradeiro desconhecido? Mas esta questão leva-nos já para um outro problema, que poderemos chamar de relativização da impossibilidade subjetiva, abordado mais à frente neste texto. 40 Apoiando-se na legitimidade genérica para o cumprimento, v. Menezes Leitão, Direito... cit., p. 118; referindo a conexão sistemática entre o art. 791.º e o art. 828.º do Código Civil, v. Nuno Pinto Oliveira, «Contributo...» cit., p. 29 (cf., igualmente, Gabriela Mes quita Sousa, «Impossibilidade de cumprimento da obrigação: as alterações do regime alemão e as normas do Código Civil português», Estudos sobre o incumprimento do contrato, Coimbra Editora, 2011, , p. 121). 41 Sobre o conceito de prestação enquanto resultado ou (mera) ação de prestar, v. infra capítulo Pessoa Jorge, Direito das obrigações, AAFDL, 1976, p Book Revista de Direito Civil - 2 (2018).indb /06/18 10:01

15 A impossibilidade subjetiva das prestações fungíveis e o dever de substituição do devedor 401 Tal dever de substituição poderia existir nos termos da lei, do contrato ou dos usos 43. Como acima se referiu, o Autor admite que este entendimento não corresponde ao sentido literal mais aparente do texto, mas argumenta que se se entender que o devedor é sempre obrigado a fazer-se substituir por terceiro quando está pessoalmente impedido de cumprir, isso é o mesmo que afirmar que a obrigação só se extingue quando se verifica impossibilidade objetiva no sentido corrente (ninguém pode cumprir), o que torna inútil, se não mesmo incompreensível, a primeira parte do artigo 791.º 44 e isto porque seria já de impossibilidade objetiva, e não subjetiva, que deveríamos falar, quando o devedor, como prevê a segunda parte do artigo 791.º, não pode fazer-se substituir por terceiro. 45 O Autor utiliza também a seu favor o princípio da culpa, vigente no âmbito da responsabilidade civil obrigacional 46, para além de invocar a doutrina de Manuel de Andrade no sentido da tendencial equiparação entre impossibilidade objetiva e subjetiva a nível exoneratório, exceto quanto às chamadas obrigações de resultado, com isso concluindo que a 2ª parte deste artigo não se aplica a todas as obrigações 47, ainda que não aceite a restrição da sua aplicabilidade às obrigações de resultado, mas sim aos casos em que resulta, de fonte contratual 43 Pessoa Jorge, Ensaio sobre os pressupostos... cit., p Ibid., p Ibid., p Não cremos que haja aí, na realidade, impossibilidade objetiva. O facto de o devedor não se conseguir fazer substituir não significa que não haja alguém que possa cumprir, mas simplesmente que o devedor, por algum motivo, não consegue levar essa(s) pessoa(s) a realizar(em) a prestação. Trata-se de uma situação de impossibilidade subjetiva, em que esta deve ter relevância a nível da exoneração do devedor, mas não de impossibilidade objetiva. Por este motivo, não cremos ser este argumento procedente. 46 Ibid., pp Ibid., pp (nota 76). Com efeito, Manuel de Andrade, Teoria... cit., p. 411, afirma que, nas obrigações de meios, se o esforço ou conduta [impostos ao devedor] lhe é impossível, seja objetiva a impossibilidade da prestação, seja apenas subjectiva, deve ter-se então por liberado. Diversamente, em se tratando de uma obrigação de resultado, só o exonera a impossibilidade objectiva. Para uma crítica contundente e certeira às obrigações de meios, v. Gomes da Silva, O dever de prestar..., cit., pp. 233 ss., no âmbito da qual destacamos a vigência da presunção de culpa do devedor inadimplente tanto no caso das chamadas obrigações de meios, como no caso das obrigações de resultado (e não só no último). Para além disso, como afirma Calvão da Silva, Cumprimento e sanção..., cit., pp , nota 154, a distinção que carece de relevância, pois todas as obrigações são obrigações de meios porque, enquanto instrumentos ou veículos de cooperação entre credor e devedor para conseguir uma vantagem para aquele, requerem sempre a actuação das diligências e meios imprescindíveis à realização dessa vantagem e todas as obrigações são, por outro lado, também obrigações de resultado, já que um resultado, entendido como momento final ou conclusivo da prestação, é devido em todas as obrigações (itálicos no original). Na própria terra-natal da distinção, França, apesar de a distinção ainda ser comumente feita, há quem diga que ela é sem dúvida, demasiado teórica e talvez, inútil, não a tendo dado qualquer relevância Book Revista de Direito Civil - 2 (2018).indb /06/18 10:01

16 402 Joana Macedo Vitorino ou legal, um dever de substituição só nesses casos é que a extinção da prestação exigiria que o devedor não se pudesse fazer substituir; não resultando nem da lei, nem do negócio, nem dos usos, a existência de tal dever, a extinção seria imediata, não dependendo de o devedor poder ou não fazer-se substituir, dado que não estaria a isso adstrito. III. Pinto Oliveira contesta esta posição, utilizando argumentos de ordem histórica e sistemática. Este último já foi, aliás, referido e implica tomar-se em consideração o artigo 828.º, aquando da interpretação do artigo 791.º, daquele se concluindo que se o sujeito activo da relação obrigacional tem o direito de exigir a substituição do devedor por terceiro, então o sujeito passivo da relação obrigacional tem o dever de se fazer substituir por terceiro. 48 Quanto ao argumento histórico, o Autor lembra que o anteprojeto de Vaz Serra previa um princípio de equiparação entre impossibilidade objetiva e subjetiva, mas que tal disposição não passou para a versão definitiva do Código Civil. Com efeito, Vaz Serra entendia que o devedor não deve considerar-se obrigado, em princípio, além daquilo que lhe é possível fazer 49, sendo indiferente que não possa prestar porque a prestação se tornou em si mesma impossível, como que o não possa fazer porque, embora possível em si mesma a prestação, ele pessoalmente a não pode fazer. Daqui resultava que só a título excepcional não se deveria proceder a essa equiparação, i.e. quando da lei ou do facto, donde deriva a obrigação, se conclua que o devedor está obrigado a fazer obter ao credor certo resultado, mesmo que a prestação se torne impossível para ele devedor; pois, neste caso, só a impossibilidade objetiva da prestação o libera, e nem esta, se garantiu o credor contra ela. 50 Ora, tendo esta disposição sido abandonada pelo legislador de 1966 em prol do artigo 791.º, deveria concluir-se pela consagração do princípio oposto, ou seja, da não equiparação entre impossibilidade subjetiva e objetiva. a reforma de 2016 do direito das obrigações (cf. Nicolas Dissauz/Christophe Jamin, Réforme du droit des contrats..., cit., p. 123). 48 Nuno Pinto Oliveira, «Contributo...» cit., p O Autor dá os exemplos do devedor que não pode restituir a coisa devida, porque, sem culpa sua, lhe foi roubada e do tomador de seguro que não pode pagar o prémio de seguro, porque está gravemente doente e não pode encarregar um terceiro de efectuar o pagamento, concluindo que em nenhum dos casos incorrerá o devedor em responsabilidade (Vaz Serra, «Impossibilidade superveniente...», cit., pp ). 50 Ibid., pp e Veja-se também o que escreve na p. 28: [o] devedor deve exonerar- -se também, em princípio, quando lhe é impossível fazer a prestação, embora esta pudesse ser feita por outras pessoas, se ele não puder considerar-se obrigado a recorrer ao concurso dessas pessoas. Book Revista de Direito Civil - 2 (2018).indb /06/18 10:01