RETRATO DO COTIDIANO ANTONIO SOARES GOMES, POETA E CONTISTA MATO-GROSSENSE

Transcrição

1 RETRATO DO COTIDIANO ANTONIO SOARES GOMES, POETA E CONTISTA MATO-GROSSENSE Resenhado por Liliane Batista Barros (UNEMAT UFPA) Antonio Soares Gomes, nascido em Poxoréo - MT, graduado em Ciências Econômicas, reside atualmente em Cuiabá, onde leciona na UNIC. O autor mato-grossense publicou, até o momento, quatro livros: Retrato do Cotidiano - poemas e Defunto Presunçoso contos de 1998 e um terceiro livro Crescendo com as Letras infanto-juvenil a ser lançado. Poesias: Retrato do Cotidiano Ao falarmos de poesia, convém reportarmos a Adolfo Casais Monteiro que afirma Em poesia criar não é traduzir para uma língua à parte algo que lhe seja exterior. A poesia tem, portanto, um mundo próprio; não é uma forma 1 1. Essa afirmativa pode causar polêmica entre os intelectuais ainda hoje pois temos aqueles que procuram na poesia a forma ou fôrma como arte. A estes a produção poética de Antonio Soares Gomes vai propiciar uma agradável surpresa, pois, ao mesmo tempo em que se tem, em um primeiro olhar, a perspectiva de uma literatura descompromissada, ao observar mais atentamente, pode-se encontrar alguma preocupação formal. Esta pode ser observada tanto no cuidado com o ritmo, na escolha das palavras, das rimas e na distribuição dos versos no papel em que opta por versos curtos e longos sempre na mesma proporção. Retrato do cotidiano O primeiro livro de Antônio Soares Gomes é Retrato do cotidiano, a obra está dividida em sete partes: família, meus amores possíveis, impossíveis, imaginários e real, retrato, lugares e folclore, poesia, sexualidade e diversos. Na primeira parte, família, o autor fala de 1 MONTEIRO, Adolfo Casais in A palavra essencial: estudos sobre a poesia. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965.

2 momentos em família e dificuldades de sobrevivência. É possível observar um início de engajamento literário na produção poética do autor, como em Tiago e Dona Doca, em que narra as dificuldades de sobrevivência e o compromisso com o social a começar pela própria família. Tiago Pede, pede Papai não pode dar Pede, pede Mamãe não pode dar Não entende Como é difícil ganhar Pensa alto, pensa grande Fala do futuro Querendo ser doutor Muito quer ter Pra não precisar negar Sonha com os filhos Que todos presentes vão ganhar Tenho fé em Deus Que há de te abençoar Tiago já tem em seus planos uma profissão que tenha o retorno no capital. Ao que parece, o menino tem a concepção de que a única forma de ter os bens de consumo é através do trabalho. Mas para Tiago a única carreira de sucesso (na concepção do menino tem a conotação do capital) é a de doutor. Para ele, doutor é rico e rico é quem tem o capital para comprar o bem que quiser.

3 Na segunda parte do livro, meus amores possíveis, impossíveis, imaginários e real o autor toca no drama do homem contemporâneo que é o existencialismo. A busca pelo outro para superar a solidão que é o conflito do homem contemporâneo. É o que podemos ler no poema Procura: Procura Ando pela noite Procurando aventuras Não encontro ninguém Vagueio por ruas e praças A espera do prazer Noite adentro O tempo passa A espera é em vão A esperança de um encontro Alimenta meu coração A madrugada chegando Eu ainda sozinho A pensar na solidão Alguém passa Firmo o olhar, não reconheço Espero se aproximar, Fico encantado É você Sorridente e meiga Não contenho Dou-lhe um beijo Você nem sequer se importa Mas vou embora satisfeito Procura é a busca pelo prazer nas ruas durante a noite. A noite é o mistério e a realização do desejo se faz, mesmo que momentânea, mas o que importa

4 é o desejo realizado. É possível observar nos poemas já comentados a solidão e a insatisfação do eu poético desde a não realização do desejo do filho, até a solidão. Há um silêncio de outras vozes de respostas o filho procura a solução no devir; o beijo roubado não despertou a reação do outro pelo olhar do poeta o homem está fadado a ser só. Nessa perspectiva, temos Angústia que trata ainda da solidão do homem e da busca pelo outro. Mais adiante, Dúvidas, que é outro tormento do homem no drama de encontrar alguém e, por fim, Esquiva: Esquiva Não me faças juras Não aceito promessas O segredo e o encanto De um grande amar Está na beleza De um eterno se dar Te busco de dia Te caço de noite Você se esquiva Me faz sonhar Relembro O passado Não posso esquecer, És sutil Parece gentil Mas não quer me amar. A negação ao amor tem marcas nos dois primeiros versos iniciados por não; nos versos seguintes, a busca do eu poético pela amada se faz de noite como fera na palavra caça e de dia como homem pelo uso da palavra buscar. Mas o ser amado não aceita e, caso raro na produção de Antônio Soares Gomes, o poema termina com um ponto final. Fim da esperança?

5 Das poesias destacadas, observamos que são trabalhados os temas de um tempo de angústias, de amores realizados, sonhados ou imaginados, mas nega as juras, as promessas, pois busca a essência no sexo, na entrega total do corpo e da alma. Em retrato, o poeta retoma a temática da denúncia social da fome da corrupção do abandono que são o cotidiano das grandes cidades. Reitera o compromisso social e o engajamento literário como é possível observar em fome, a sutileza do poeta se dá ao falar da dor que dói no corpo, fome física e fome de amor, que faz definhar o homem tanto na parte física como na alma. Fome A fome dói Dói no peito Dói n alma Seca os olhos Endurece os nervos Que retesados quase fura a pele A fome definha os músculos Mostrando os ossos Nem músculos Cururu Com siriri Dá cururi É cururu É siriri É som torrão Da viola de cocho E ganzá Tem saia rodada E gingado do violeiro

6 O que é, o que é? O que dá, o que dá? Cururu com siriri? Tem dança de roda E versos simples É tradição É ribeirinho O que é, o que é? O que dá, o que dá? Cururu com siriri? Dá cururi É cururu É siriri O brincar com as palavras e o som gerou esse poema lúdico e tão tocante. É um poema que pode ser brinquedo, tanto de um adulto quanto de uma criança. O artifício do adivinhar O que é, o que é?/o que dá, o que dá? deu ao poema o lugar do lúdico, do jogo, da brincadeira e a fusão das palavras que leva à fusão de grupos folclóricos criou um outro lugar, o cururi, que não nega a essência, o cururu e o siriri. Já em poesia, composto por cinco poemas, encontramos a metapoesia que transcende a simples inspiração e revela momento de criação pelo que passa o poeta. POESIA Fazer poesia É ter fantasia Com fatos reais Do amor que sacia Da paixão que seduz

7 Deixando demente De tanta emoção: Viajando no tempo Rasgando o passado Sonha o futuro Negando o impossível Desafiando a razão; Viver e sonhar É como cantar É só se soltar. Afinal o que é ser poeta e o que é a poesia? Para Cassiano Ricardo: Que é a poesia? Uma ilha cercada de palavras por todos os lados Para Antônio Soares Gomes poesia é sonhar, cantar é ter fantasia/ com fatos reais.o jogo de opostos que cria, talvez seja, a imanência da poesia que ainda resiste ao mundo contemporâneo, na perspectiva do poeta. A penúltima parte do livro tem como subtítulo sexualidade, o que causa estranhamento, pois por que sexualidade não foi colocado junto com meus amores possíveis, impossíveis, imaginários e real? Afinal, ao que parece, o autor considera como amor a totalidade alcançada que se concretiza na realização plena ao unir sentimento e corpo. Pois, para a surpresa do leitor, apenas dois poemas falam de sexo e os outros dois falam do Brasil e da hipocrisia, o que faz o leitor pensar que sexo pode ter outros significados além do amor total. Outros interesses

8 Ando dias Ando noites Pensamentos correm soltos Com os que cruzo Mostram interesses Pelo que posso oferecer Interesses escondidos Nos sentimento manifestos Hipocrisia camuflada se apresenta Quando surge a realidade Ser leal tem um tempo Tempo de encontrar Outros interesses Que lhes possam agradar. Novamente o movimento volta ao poema andar. O movimento leva à mudança de interesses escondidos, diferente dos manifestos o que gera a hipocrisia. Mas o que tem a hipocrisia com sexualidade? O interesse que está escondido e a falsidade nos sentimentos manifestos. Talvez o desejo camuflado e o que é revelado. Mesmo caso da poesia Brasil, mas nele a sexualidade se dá na fusão das raças no gerar o novo. Por fim, diversos, que retoma o engajamento literário na temática social dos desfavorecidos, do preconceito racial contra o negro e o índio e a esperança de um mundo mais justo. Redenção Um dia O homem não terá mais preconceitos Reverterá todos os conceitos Livrando-se da ignorância Rompendo com a simbologia Que o escraviza

9 E amedronta Libertará das correntes De Todos os tabus Negará os valores Da sua opressão Bênção! Pela sua redenção. A poesia tem a forma de um desabafo pela ausência de pontuação até Bênção! Que vem seguido de Pela sua redenção. Que põe um ponto final da aflição e desabafo. Se tomarmos o poema anterior intitulado Bororo, é possível observar o quanto a intolerância tem gerado despropósitos. O homem, com medo do próprio homem, como se cor ou posição social definisse a índole de cada um. A intolerância começa no disfarce do olhar que revela conceitos e preconceitos. O leitor não via encontrar nenhum poema intitulado Intolerância é uma forma de redenção que o poeta utilizou quando escolheu títulos como Bororo, como Liberdade, por exemplo.