A LITERATURA INFANTO-JUVENIL COMO APORTE PARA OS ESTUDOS DE GÊNERO NA ESCOLA SONHOS & MEDOS O QUE GUARDO NA BOLSA AMARELA?

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1 A LITERATURA INFANTO-JUVENIL COMO APORTE PARA OS ESTUDOS DE GÊNERO NA ESCOLA SONHOS & MEDOS O QUE GUARDO NA BOLSA AMARELA? Luciane Botelho Martins 1 Para começo de conversa... A educação brasileira tem colocado educadores, pesquisadores e estudantes diante de muitos desafios, entre os quais destaco o pensar e agir em prol de um ensino que ultrapasse os limites do aprendizado formal. É, pois, em busca da formação de sujeitos mais humanos, capazes de sonhar e de vencer o medo frente os perigos que uma sociedade marcada pela opressão oferece, que pensei práticas capazes de questionar o machismo, a homofobia e a intolerância. Práticas de segregação na escola e na vida sempre me incomodaram, mas minha inquietação aumentou ainda mais quando percebi que as práticas que eu presenciava na escola eram apenas a ponta do iceberg. Casos de violência doméstica, sofridas por alun@s, eram/são muito mais frequentes na comunidade, do que se podia/possa imaginar. Foi movida pelo desejo de fazer algo que comecei a participar do Grupo de Pesquisa Sexualidade e Escola GESE/FURG, em Entre as atividades do grupo, o projeto Escola Promotora da Igualdade de Gênero foi decisivo na construção de um projeto de escola, o qual recebeu no nome de Sonhos & medos O que guardo na bolsa amarela? inspirado na obra literária A bolsa amarela, da escritora pelotense Lygia Bojunga. E, assim, certa do meu papel de educadora e pesquisadora, é que apresento alguns passos do Projeto que foi realizado nas turmas de 5º ano (turmas 51 e 52), onde atuei como professora das disciplinas de Língua Portuguesa, História, Geografia e Arte, em uma escola da rede pública em Rio Grande - RS. Ao assumir as turmas, logo nos primeiros dias de aula, percebi um vocabulário machista e preconceituoso. Ao solicitar algumas escritas ou até mesmo ao verificar as tarefas, percebi também alun@s deixavam escapar angústias como discussões, brigas e violência em casa. 1 Mestra em Letras, LEAD/UCPel e UFPel, lucianebmk@hotmail.com.

2 Foi, pois, a partir dessa realidade que veio o desafio: Como desenvolver a reflexão crítica d@s alun@s sobre esses acontecimentos? Como tornar as aulas prazerosas, visto que diante de tantos problemas as crianças iam para a escola por obrigação? O projeto: uma costura entre a Literatura e a igualdade de Gênero A busca por respostas para os desafios ora postos, juntamente com a obra literária de Lygia Bojunga motivaram a construção do projeto Sonhos & medos O que guardo na bolsa amarela? A obra trata de uma menina Raquel que, por ser a caçula, é impedida de fazer muitas coisas. Ela tem vontades que lhe são negadas por ser menina, daí o primeiro conflito da protagonista, o desejo de ter nascido menino. O enredo presente na obra possibilita uma série de reflexões sobre as convenções impostas socialmente entre elas: o que é ser menino e o que é ser menina. De acordo com Zoppi-Fontana e Ferrari,...as identificações de gênero configuram as práticas discursivas ao mesmo tempo que se configuram nelas, como efeito de um processo de interpelação complexo e contraditório, no qual as identificações de gênero se articulam e outras identificações nos processos de constituição do sujeito do discurso (2017, p. 9-10). Dada a definição das autoras, podemos dizer que as identificações de gênero não correspondem ao sexo biológico dos sujeitos, mas às construções sociais que determinam padrões, lugares hierárquicos para os sujeitos. Portanto, é na bipolaridade (homem X mulher) que se constroem os discursos da exclusão e segregação. Vale ainda destacar que as identidades de gênero como práticas discursivas se materializam nos textos produzidos pelos sujeitos alun@s. E é assim, movida pelo pensamento do mestre...é preciso ousar se revoltar [...] é preciso suportar o que venha a ser pensado, isto é, é preciso ousar pensar por si mesmo (PÊCHEUX, 2009, p. 281), que propus um trabalho crítico reflexivo, baseado nos exercícios da leitura e produção escrita.

3 O carro chefe do projeto foram os diários, cada tinha a sua bolsa amarela e o seu diário. No diário, eram registrados textos produzidos pel@s alun@s a partir de problematizações que surgiam das obras literárias lidas diariamente em sala de aula cada dia era lido um capítulo. Questões levantadas nas obras eram discutidas e relacionadas às questões do bairro e da cidade. Trata-se de um movimento reflexivo: ficção & realidade. O trabalho começou em abril de 2017 e encerrou em dezembro do mesmo ano. Trabalhamos com Malala, a menina que queria ir para a escola, Malala, uma menina muito corajosa, Iqbal, um menino muito corajoso, A bolsa amarela, Eugênia e os robôs, Chapeuzinho esfarrapado e outros contos feministas do folclore mundial, Coisas de menino e Pinóquia. Além do trabalho de escrita nos diários, produzimos: pipas (símbolos de liberdade); acrósticos sobre as qualidades de Malala; robôs de sucata (uma representação da tecnologia que por vezes desumaniza as pessoas); poemas que visam valorizar o meio em que vivemos, entre outras atividades. Percebi que o trabalho apresentou algumas mudanças práticas: a turma não divide mais a fila e os trabalhos em grupos são organizados de forma mista, desnaturalizando grupos exclusivos de meninos ou meninas. Sobre os diários, vale registrar que ficaram guardados em um armário na sala de aula, só podiam ser lidos por estudante autorizasse e, só foi entregue aos seus respectivos autores no último dia letivo. Trabalhamos com o respeito e a confiança, na prática. Certo dia, alguns estudantes pediram para ler seus textos em voz alta para colegas apreciassem seu(s) texto(s), um momento riquíssimo de escuta do outro e de aprendizagens.

4 Outro movimento do nosso projeto foram as personagens Ana e bonec@s surgiram da necessidade de se discutir, também, as questões de raça. Seguindo a mesma lógica da escrita de diários, construímos um diário para cada personagem e uma bolsa. Na bolsa, além da personagem e do diário, havia também caneta e um livro de história para ser lido pel@ estudante durante o dia em que a personagem estivesse em sua casa. As personagens percorreram as duas turmas. Nesse diário, a escrita é coletiva pois cada estudante era desafiado a registrar como foi passar um dia com a personagem. É importante salientar que a primeira página do diário da Ana e do Vítor tem uma apresentação do projeto e da personagem. A turma 51 adotou o Vítor, nome escolhido pela turma e a turma 52 adotou a Ana. As ideias dos alunos foram organizadas por mim e resultaram nos textos dispostos acima. O mais curioso nesse trabalho foi a resistência inicial de alguns meninos ao bonec@ para casa e isso ficou registrados nos diários. Tomei a liberdade de colocar aqui um dos registros porque trata-se de um texto compartilhado. No diário das personagens não há segredo! (ocultei a autoria, por questões éticas).

5 Efeito de fecho, porque o trabalho continua... As escritas revelaram dois movimentos: o primeiro, da resistência e o segundo, da conscientização de que a divisão e o preconceito são construções da sociedade, e é preciso lutar contra todo o tipo de segregação, pois somos tod@s gente! E, gente deve respeitar e ser respeitada. Nesse ponto do relato, eu gostaria de retomar o título do projeto Sonhos e medos O que guardo na bolsa amarela? para dizer que é possível sonhar os próprios sonhos. Talvez não consigamos mudar o mundo, mas com pequenos gestos, com pequenas práticas estaremos semeando a transformação de pequenos espaços. Nossos desafios são muitos e estão postos. Propor ações depende de cada um de nós, depende dos sonhos que nos movem. A igualdade e o respeito entre gêneros e raças é o meu. Referências PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução de Eni P. Orlandi (et al.). 4. ed. Campinas: Unicamp, p. ZOPPI-FONTANA, Mónica; FERRARI, Ana J.(Org.). Mulheres em discurso: Gênero, linguagem e ideologia. Campinas: Pontes Editores, p. v. 1.

6 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE - FURG Catalogação na Publicação: Bibliotecária Simone Godinho Maisonave CRB -10/1733 S471a Seminário Corpo, Gênero e Sexualidade (7. : 2018 : Rio Grande, RS) Anais eletrônicos do VII Seminário Corpo, Gênero e Sexualidade, do III Seminário Internacional Corpo, Gênero e Sexualidade e do III Luso-Brasileiro Educação em Sexualidade, Gênero, Saúde e Sustentabilidade [recurso eletrônico] / organizadoras, Paula Regina Costa Ribeiro... [et al.] Rio Grande : Ed. da FURG, PDF Disponível em: ISBN: Educação sexual - Seminário 2. Corpo. 3. Gênero 4. Sexualidade I. Ribeiro, Paula Regina Costa, org. [et al.] II. Título III. Título: III Seminário Internacional Corpo, Gênero e Sexualidade. IV.Título: III Luso-Brasileiro Educação em Sexualidade, Gênero, Saúde e Sustentabilidade. CDU 37: Capa e Projeto Gráfico: Thomas de Aguiar de Oliveira Diagramação: Thomas de Aguiar de Oliveira