A GENEROSIDADE: REFLEXÃO EM TORNO DO CONCEITO
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- Eliana Ribas Osório
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1 A GENEROSIDADE: REFLEXÃO EM TORNO DO CONCEITO Ramiro Marques A generosidade é um vocábulo que vem do latim generositate, que significa bondade da raça, boa qualidade. O adjectivo generoso vem do latim generosu, que significa de boa extracção, de boa raça e nobre. A magnificência vem do latim magnificentia, que significa nobreza e grandeza de alma. A generosidade é uma virtude que diz respeito à riqueza e, sobretudo, no dar partes da riqueza a quem precisa e na quantidade apropriada, tendo em conta a propriedade da pessoa que dá e as necessidades de quem recebe. Aristóteles limita a riqueza, objecto da generosidade, a tudo aquilo que pode ser medido pelo dinheiro. Não estamos, por isso, a falar de riqueza espiritual, de honra ou de glória, mas apenas do que pode ser transaccionado com dinheiro. A generosidade é uma virtude da dádiva. Distingue-se da justiça pelo facto de não se limitar a dar ao outro aquilo que é dele ou lhe pertence, mas sim aquilo que, sendo nosso, faz falta ao outro. A justiça não é necessária nem essencial à generosidade. Enquanto a justiça é uma virtude que depende, sobretudo, da reflexão, a generosidade depende, ainda mais, do coração e do temperamento. Comte-Sponville (1) distingue, assim, a generosidade da justiça: "é certo que a justiça e a generosidade têm ambas que ver com as nossas relações com os outros; mas a generosidade é mais subjectiva, mais singular, mais afectiva, mais espontânea, ao passo que a justiça, mesmo aplicada, conserva algo de objectivo, de mais universal, de mais intelectual ou mais reflectido". A pessoa generosa está num estado de equilíbrio e de meio termo entre a pessoa esbanjadora ( o vulgar perdulário) e a pessoa avara. O meio termo (generosidade) é uma virtude e a deficiência e o excesso são vícios, embora a falta de generosidade seja mais viciosa do que o esbanjamento. Seguindo a teoria aristotélica da virtude como um estado de meio termo, podemos dizer que a pessoa avara está mais afastada da virtude do que a pessoa esbanjadora. A pessoa avara caracteriza-se por gostar muito de receber e muito pouco de dar. À medida que a pessoa envelhece e se habitua a receber muito e a dar pouco ou nada, vai transformando essa condição num vício incurável. A pessoa esbanjadora, à medida que vai empobrecendo, vai aproximando-se mais do meio termo. Com um pouco de habituação e uma boa orientação, a pessoa esbanjadora pode tornar-se generosa, mas a
2 pessoa avara tem a tendência para se afastar, cada vez mais, da média. A pessoa generosa sente mais prazer em dar às pessoas certas, nas quantidades adequadas e da forma correcta do que em receber, ainda que seja das fontes certas. A pessoa avara é a que leva a riqueza mais a sério do que aquilo que convém. A pessoa esbanjadora é a que é intemperada no gastar. A virtude da generosidade é muito apreciada porque é mais elogiado e digno de apreço quem dá do que quem recebe, porque não receber é mais fácil do que dar. Enquanto o generoso sente prazer no dar, o avaro goza com o guardar e, por vezes, chega ao ponto de apreciar a obtenção da riqueza a partir de fontes erradas. A generosidade é uma virtude porque procura finalidades rectas, isto é, dar às pessoas certas, nas quantidades adequadas, no momento certo e da forma correcta. A avareza é uma vício porque visa finalidades baixas, ou seja, guardar para si o máximo de riqueza, revelando deficiência no dar e excesso no receber. Como é mais fácil receber do que dar, não admira que seja mais comum a avareza do que a generosidade. A pessoa generosa sente prazer a dar. Aquele que dá por obrigação não pode ser considerado generoso. Tão pouco o que sofre com o dar. O que dá às pessoas erradas, ou não dá com objectivos rectos, também não pode ser considerado generoso. Há algumas condições inerentes aos acto generoso. Não depende da quantidade que se dá, mas do estado do doador. O que se dá tem de provir de fontes correctas. Dá-se apenas porque se gosta de dar, sem quaisquer outras finalidades ou razões. O generoso é o que dá de acordo com as suas posses e em função de finalidades rectas. Aquele que dá mais do que pode, não é generoso mas perdulário. A generosidade é uma média relacionada com o dar e receber riqueza e a pessoa generosa dá e gasta a quantidade certa e fá-lo com prazer. O generoso é mais pronto a dar benefícios do que a receber. A pessoa avara é deficiente no dar e excessiva no receber, embora não se apodere, forçosamente, dos bens dos outros de forma ilegítima. Isso acontece porque, embora o avaro ame em demasia a aquisição de bens, possui uma certa forma de decência que o leva a envergonhar-se de tomar para si os bens dos outros. Há, no entanto, algumas pessoas que levam o seu amor excessivo à aquisição de bens até ao ponto de se apoderarem dos bens dos outros, de qualquer forma. Estão, neste caso, todos os que exercem profissões degradantes ou os usurários que emprestam dinheiro a juros elevados. Mais reprováveis, ainda, são os que levam a sua paixão pela aquisição de bens ao ponto de roubarem, mostrando estar numa completa dependência dos apetites sensíveis. O que caracteriza a pessoa generosa? "o generoso não é prisioneiro dos seus afectos, nem de si próprio: pelo contrário, é
3 senhor de si, e por isso sem desculpas e sem as buscar. Basta-lhe a vontade. Basta-lhe a virtude" (2). Aristóteles considera que há vícios mais afastados do meio termo e, portanto, da virtude, do que outros. A avareza é um vício mais afastado da generosidade do que o esbanjamento. Enquanto a avareza é um vício incurável que se acentua com a idade, o esbanjamento pode ser corrigido, com habituação e orientação espiritual, porque o esbanjador possui o traço e a motivação desejável do generoso. A pessoa esbanjadora, além do mais, não parece ser má, se atendermos à noção aristotélica de benefício ou prejuízo feito a outros pelos vícios. É pacífica a ideia de que a pessoa esbanjadora não age com a intenção de fazer mal aos outros. Quando muito, pode acabar por fazer mal a si própria. Contudo, quando o esbanjamento chega ao ponto de fazer mal, também, aos que dependem da fortuna do esbanjador, então já poderemos estar perante um vício com dolo, revelador de uma certa insensibilidade para com quem nos ama e depende nós. Aquele que gosta de esbanjar e aquele que é avaro têm em comum a partilha do egoísmo. E o que é o egoísmo? Aristóteles dedica o capítulo XIII do livro II da Magna Moralia à análise do egoísmo. Começa por referir que o homem de bem pode ter amizade por si próprio, mas isso não significa que seja egoísta. O egoísta é aquele que, em tudo o que seja útil, procura apenas o seu interesse próprio, ignorando os interesses e os direitos dos outros. A pessoa vil é sempre egoísta, pois essa pessoa age sempre na defesa do seu interesse próprio e nunca em defesa dos outros. O homem de bem é o contrário: age em defesa dos outros e é, por isso, que o homem de bem nunca pode ser egoísta. Claro está que todas as pessoas têm um impulso e uma inclinação para adquirirem bens e quase todas as pessoas acreditam que são merecedoras de bens, sobretudo de bens associados à riqueza e ao poder. Mas, o homem de bem sabe reconhecer aquilo que lhe pertence por mérito e por direito e aquilo que pertence aos outros. O homem de bem só fica com aquilo que lhe cabe e, em caso de dúvida, prefere ficar com menos do que aquilo que lhe cabe, porque, como foi sabiamente referido por Sócrates, é preferível ser vítima de injustiça do que cometer injustiça. O homem egoísta considera que lhe cabe tudo aquilo que lhe for possível adquirir e nunca crê que pode fazer mau uso dos bens. É, por isso, que os egoístas quando obtêm muito poder tendem a abusar do poder, pois revelam uma grande ignorância em relação às suas limitações e aos seus defeitos. O que caracteriza o homem de bem é precisamente a capacidade para renunciar, em favor dos seus amigos, aos bens úteis e a ser capaz de amar os seus amigos tanto como se ama a si. Por isso, o homem de bem não é egoísta em relação aos bens úteis, mas é, de uma certa forma, egoísta, em relação aos bens da alma. Ou seja, do ponto de vista do útil, o homem de bem prefere o seu amigo, mas do ponto de vista do belo e do bem, é ele próprio que ele
4 prefere, pois reserva para si os melhores tesouros, aqueles que dizem respeito ao belo e ao bem, os tesouros da alma, da sabedoria e da verdade. Vejamos, agora, a magnificência. Enquanto a generosidade está ao alcance de qualquer pessoa virtuosa, a magnificência diz respeito apenas ao dar em larga escala, grandes quantidades de riqueza, para propósitos de grande dimensão, em troca de honra e glória. Aristóteles (3) define larga escala como algo de grandes dimensões, inacessível às pessoas vulgares, e que é próprio e adequado à riqueza de quem dá e às circunstâncias e finalidade. A pessoa magnificente é a que gasta uma grande quantidade de riqueza, num empreendimento digno, de maneira apropriada, numa realização valiosa. Embora a magnificência implique generosidade, distingue-as o seu objecto e a escala. Em comum, o facto de, tanto o generoso como o magnificente, gastarem o que está certo, de forma apropriada, em coisas valiosas. A magnificência de uma realização não é apenas proporcional à riqueza nela investida. Quanto mais valioso e excelente for o empreendimento, maior a sua magnificência. Aristóteles distingue dois tipos de magnificência: a que diz respeito à esfera pública e a da esfera privada. Como exemplos da primeira, os templos erguidos em honra dos deuses ou a oferta de grandes festas e eventos culturais, por ocasião de acontecimentos ou datas marcantes para a comunidade. Quando um pai oferece um casamento magnificente à sua filha, sem exceder ou ficar aquém das suas possibilidades, está a praticar um acto de magnificência da esfera privada. A mesma coisa, quando alguém oferece um presente de casamento ou de aniversário magnificente a um amigo. Tal como com a generosidade, também a magnificência tem o seu excesso e a sua deficiência. O excesso é a vulgaridade. A deficiência é a baixeza ou mesquinhez. Quando a pessoa se excede nos gastos, gastando mais do que está certos para as suas posses, e ainda por cima num empreendimento pouco valioso ou de mau gosto, dizemos que essa pessoa caiu na vulgaridade e no fausto. À pessoa vulgar falta-lhe a noção da medida e da proporção: gasta pouco quando se justifica gastar muito e gasta muito quando é correcto gastar pouco. A pessoa baixa e mesquinha é deficiente em tudo, não apenas na escolha dos fins rectos, mas também dos meios e quantidades apropriadas: em tudo aquilo que faz, procura gastar o menos possível, pensando sempre que está a gastar mais do que aquilo que devia. Na Magna Moralia, Aristóteles dedica um pequeno capítulo à magnificência, afirmando: "a magnificência é o meio termo entre o fausto e a mesquinhez. Diz respeito às despesas que é necessário fazer segundo as conveniências. Todo o homem que gasta quando não é necessário, é faustoso: por exemplo, todo o homem que
5 oferece um jantar aos membros da sua associação como trataria os convivas de um casamento, é um faustoso...o mesquinho é o seu oposto, aquele que não faz uma grande despesa numa circunstância que o exige, ou que se a fizer (por exemplo, no casamento), o faz de uma maneira indigna e insuficiente" (4). Embora a vulgaridade e a baixeza sejam vícios, porque se afastam da proporção, da medida e do meio termo, não poderemos considerá-los vis, em si mesmas, visto que não visam fazer mal aos outros. São mais deficiências de carácter do que deformações de carácter. Notas 1) Comte-Sponville, A (1995). Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Lisboa: Editorial Presença, p. 95 2) idem, p ) Aristóteles (1985). Nichomachean Ethics. (Introdução, tradução e notas de Terence Irwin). Indianapolis: Kackett, p. 93 3) idem 4) Aristóteles (1995). Les Grands Livres d`éthique (Magna Moralia). Évreux: Arléa, 1192 a, 5, p. 102
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