Histórias sobre a língua inglesa na vida de doze mulheres brasileiras em Londres
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- Ian Monteiro de Carvalho
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1 Histórias sobre a língua inglesa na vida de doze mulheres brasileiras em Londres MANOELA DOS ANJOS AFONSO RODRIGUES* Introdução De acordo com o censo realizado em 2011 no Reino Unido 1, constatou-se que naquele momento havia aproximadamente Latino-Americanos 2 vivendo em Londres, sendo que os dois maiores grupos eram os de brasileiros (37,7%) e colombianos (23,2%) (McILWAINE e BUNGE, 2016). Do número total, verificou-se que 53% eram mulheres e, embora os brasileiros figurassem como o maior grupo, 57% das mulheres eram colombianas (McILWAINE e BUNGE, 2016). No relatório Towards visibility: the Latin American community in London 3, McIlwaine e Bunge (2016) sugerem que a comunidade Latino- Americana é a segunda população de imigrantes não europeus que mais cresce em Londres. Em 2013, uma nova estimativa indicou a presença de cerca de indivíduos vivendo no Reino Unido, dos quais estavam domiciliados na capital. Verificou-se também que sua população possui um bom nível de educação formal, porém a falta de boas oportunidades de emprego, exploração da mão de obra, moradia precária e condição imigratória irregular foram os problemas mais citados pelos entrevistados. Tais dificuldades podem estar ligadas direta ou indiretamente à falta de proficiência na língua inglesa, já que Mcllwaine e Bunge (2016) indicam que 17% dos participantes da pesquisa não conseguiam se comunicar em inglês. Além disso, a língua inglesa foi citada por cerca de 90% dos entrevistados como um dos maiores desafios para aqueles que chegam ao Reino Unido depois de viver um período em outros países da Europa tais como Espanha 4, Portugal e Itália. Em 2013, o Grupo de Estudos sobre Brasileiros no Reino Unido (GEB) desenvolveu um levantamento com foco na experiência imigratória de mulheres brasileiras. Foram entrevistadas 435 mulheres residentes em 42 países, das quais 119 viviam no Reino Unido. O * UFG, PhD in Arts / Chelsea College of Arts, apoio CAPES McIlwaine e Bunge (2016, p. 4) usam o termo Latino-Americano para se referir às pessoas que nasceram em países das Américas que têm como língua materna o espanhol ou o português. Os países incluídos na definição são: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, República Dominicana, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Peru, Paraguai, Porto Rico, Uruguai e Venezuela. 3 Neste relatório, McIlwaine e Bunge (2016, p. 6) utilizam os seguintes dados para a constituição de suas análises: censo de 2011 do Reino Unido; levantamento quantitativo conduzido com 400 indivíduos Latino- Americanos que viveram em outro país europeu antes de residirem no Reino Unido; a partir do grupo de 400 pessoas foram realizadas entrevistas qualitativas com 28 indivíduos e também com mais 4 representantes de organizações que dão suporte à comunidade Latino-Americana neste país. 4
2 2 levantamento mostrou que as dificuldades com a língua, a falta de boas oportunidades de trabalho, o isolamento e a solidão foram os problemas mais citados pelas entrevistadas (EVANS et al., 2013). Problemas com a língua do país de residência podem afetar consideravelmente a autoestima, a confiança, as relações interpessoais e profissionais, as condições socioeconômicas, a compreensão das leis do país, produzindo diversos níveis de vulnerabilidade. Neste artigo apresento brevemente a pesquisa de doutorado Language and place in the life of Brazilian women in London: writing life narratives through art practice (AFONSO, 2016), desenvolvida entre os anos 2013 e 2016 no Chelsea College of Arts da University of the Arts London. Esta investigação está situada no campo das artes visuais e propõe diálogos com os campos da geografia feminista, autobiografia, pedagogia crítica e dos estudos decoloniais. Sua problematização partiu da minha experiência como imigrante em Londres, especialmente no que se refere à influência que as novas relações que estabeleci com a língua inglesa exerceram sobre a minha percepção do lugar. Além disso, o desejo de conhecer de forma mais detalhada as histórias sobre língua e lugar contadas por outras mulheres brasileiras imigrantes também influenciou a delimitação do problema da pesquisa. Nesta investigação pergunto, portanto, como uma prática artística ativada por experiências de deslocamento geográfico e desarticulação da língua pode se tornar lugar de enunciação para decolonial selves 5. O objetivo geral é criar abordagens artísticas para gêneros de escritas de vida, tais como o diário, o memorial e a correspondência, no intuito de transformá-los em plataformas para narrativas individuais e coletivas sobre experiências de deslocamento geográfico e identitário. A seguir, apresento parte da prática artística desenvolvida durante esta pesquisa, dando destaque para a relevância da história oral como fonte de materiais (as narrativas) e elemento de ligação entre as esferas individual e coletiva das práticas desenvolvidas no âmbito desta pesquisa em arte 6. História oral: fonte de materiais e ponte de ligação A prática artística desenvolvida nesta pesquisa teve dois momentos distintos, porém interrelacionados. Na primeira etapa, de caráter individual, criei respostas artísticas às minhas 5 Decolonial selves emergem da consciência imigrante resultante do pensamento de fronteira, da desobediência epistêmica e da desconexão (delink) da matriz colonial do poder (ver MIGNOLO, 2011). 6 A pesquisa em arte diferencia-se da pesquisa sobre arte porque delimita o campo do artista-pesquisador que orienta sua pesquisa a partir do processo de instauração de seu trabalho plástico assim como a partir das questões teóricas e poéticas, suscitadas pela sua prática (REY, 1996, p. 82).
3 3 experiências de deslocamento geográfico e de desarticulação da língua. Este processo resultou na criação de operações de escrita que consistiam em produzir imagens fotográficas de palavras disponíveis em diversos espaços da cidade para, então, usá-las para escrever minhas narrativas (Figuras 1 e 2). Num segundo momento, depois de analisar os processos empregados na prática individual, busquei identificar métodos e procedimentos que pudessem funcionar como ativadores de escritas de vida sobre língua e lugar junto às doze mulheres brasileiras participantes da pesquisa (Figura 3). Figura 1. Hidden stories within found words, livro de artista e fotografia, 21 x 25 cm, edição única, Acervo pessoal. Figura 2. Memoir (London, ), livro de artista, 18 x 18 cm, edição única, Acervo pessoal. Figura 3. Processo coletivo de feitura de escritas, assemblagem de palavras coletadas na cidade, Acervo pessoal.
4 4 Foi por meio dos processos de fazimento 7 de escritas (utilizando fotografia, livros de artista, colagens, cartografias, ocupações espaciais com palavras etc.) que busquei compreender a dimensão autobiogeográfica (RODRIGUES, 2017) dos processos artísticos e narrativos, individuais e coletivos, ativados pelas experiências de deslocamento geográfico e identitário. Foi neste momento que a história oral passou a ocupar um papel importante na pesquisa, pois funcionou como elemento de ligação entre a minha experiência individual e a experiência de outras mulheres brasileiras imigrantes. Apesar de haver uma compreensão da história oral como registro de narrativas de experiências de vida que pode ser usado para fins de pesquisa histórica, educacional, ou mesmo figurar em exposições, programas de vídeo e em outros recursos de multimídia, como forma de apresentar experiências concretas sobre determinados acontecimentos e conjunturas (ALBERTI, 2004, p. 28), como pesquisadora em artes visuais interessa-me tomar a história oral como elemento integrante de práticas artísticas, especialmente daquelas que possuem qualidades colaborativas e socialmente engajadas (KESTER, 2004 e 2011). A história oral, assim como as artes, reúne práticas multifacetadas e co-construídas que desafiam identidades e formas autônomas convencionais (SANDINO, 2013, p. 2). História oral e entrevistas são formas de desvelar histórias sobre determinadas experiências. No campo das práticas artísticas colaborativas, tais histórias podem ser usadas como material criativo a ser incorporado a processos e/ou a resultados artísticos construídos por meio de processos dialógicos. Artistas pesquisadores, sobretudo quando realizam sua prática artística no âmbito da pesquisa acadêmica, tendem a trabalhar em diálogo com outras áreas do conhecimento, combinando teorias, métodos e práticas para, assim, borrar as bordas disciplinares e testar processos de investigação, criação e invenção que também levam ao conhecimento (SULLIVAN, 2010). Tais artistas não restringem suas práticas à produção de objetos artísticos, mas usam suas habilidades, métodos e meios para endereçar, por meio da arte, questões que estão para além dela (HELGUERA, 2011; SULLIVAN, 2010). Andrews et al. (2013) divide a pesquisa narrativa em duas abordagens teóricas: aquela centrada no evento e outra centrada na experiência. Esta última tem mais proximidade com os processos criados nesta pesquisa, pois diz respeito às narrativas provenientes de estímulos temáticos investigados por meio de entrevistas que geram histórias que, por sua vez, podem tomar formas visuais e materiais como diários, cartas, autobiografias e trabalhos artísticos (SQUIRE, 2013). Na pesquisa aqui apresentada, utilizei três estratégias para investigar 7 Na tese de doutorado, escrita em inglês, chamo tais processos de writing-making processes (AFONSO, 2016).
5 5 histórias sobre língua e lugar na vida de doze mulheres brasileiras em Londres: a) entrevistas semiestruturadas gravadas em áudio e posteriormente transcritas; b) diário; e c) ocupação de um espaço físico com ações artísticas de escrita coletiva. Neste artigo, explicarei os desdobramentos da primeira etapa, destinada às entrevistas. Língua e lugar na vida de mulheres brasileiras em Londres Entre setembro de 2014 e maio de 2015, conduzi entrevistas gravadas em áudio com doze mulheres brasileiras. As entrevistas ofereceram um panorama inicial sobre a qualidade das experiências das participantes desde a sua chegada a Londres. As entrevistas geraram momentos de diálogo em que a linha divisória entre entrevistadora/pesquisadora e entrevistadas/sujeitas da pesquisa foi tensionada. Vivemos diversos momentos em que houve troca de papéis. Assim, passamos a compartilhar experiências de forma dialógica sobre ser uma mulher brasileira em Londres lidando cotidianamente com a língua inglesa. Este processo gerou não só um sentimento de confiança e de grupo, mas despertou nas participantes um desejo de observar e investigar melhor suas próprias memórias sobre experiências que foram intermediadas pela língua inglesa ao longo de suas vidas. Cada entrevista durou em média uma hora e meia resultando em aproximadamente quinze horas de material gravado em áudio. As entrevistas foram transcritas e parte de seu conteúdo foi selecionado para compor um livro de artista chamado Língua&Lugar: relatos 8 (Figura 4). O principal objetivo do livro é funcionar como uma plataforma de enunciação, visibilidade e circulação das histórias sobre língua e lugar contadas pelas participantes da pesquisa. Figura 4. Língua&Lugar: relatos, transcrição da entrevista, livro de artista, , edição única. Acervo pessoal. 8 O livro atualmente está disponível apenas na versão impressa, mas em breve será disponibilizado em PDF para que possa ser acessado via internet.
6 6 O livro é composto por doze capítulos, ou seja, um capítulo por participante. Cada capítulo contém um conjunto de histórias com suas especificidades, porém muitas delas se entrecruzam. O processo de transcrição das entrevistas ajudou a identificar alguns temas e histórias recorrentes nas narrativas, tais como o impacto da língua inglesa na experiência da maternidade, da inserção no mercado de trabalho e da percepção de si com base numa identidade nacional ambígua, por exemplo. Outros temas mais pontuais surgiram ao longo das entrevistas, tais como racismo e assédio sexual, mas neste texto vou me limitar a tecer alguns comentários sobre as experiências relacionadas à maternidade. Nove entre as doze participantes eram mães no momento em que conduzi as entrevistas. Todas elas, com mais ou menos intensidade, contaram histórias sobre a língua inglesa no âmbito da maternidade. As histórias abrangem desde a gravidez, até consultas médicas, o momento do parto, o pós-parto, os primeiros cuidados com o bebê e a educação dos filhos. Duas das participantes tinham tido seus filhos recentemente. No caso delas, o assunto que mais teve destaque foi o sofrimento agravado pela incapacidade de falar inglês durante o parto. UG 9, casada com um brasileiro que também não falava a língua inglesa, relatou o desespero causado pela incapacidade de dizer exatamente o que estava sentindo: Eles colocavam a agulha na minha barriga pra ver se eu estava sentindo e eu não conseguia falar tô sentindo a minha barriga, porque eles furavam a minha barriga pra ver se a anestesia já estava, daí eu olhava pro meu marido e meu marido desesperado porque tinha muitos médicos na sala de cesária. Foi de emergência o meu parto, eles me doparam porque eu queria falar, eu começava a falar em português e em inglês misturado, e eu me senti desesperada. As histórias sobre o parto contadas por AR 10 foram similares: Não sei se eu falava correto em inglês eu só sei que eu falava que eu queria a epidural imediatamente. Eu gritava, dormia, levantava de novo. Apavorei todo mundo com aquela história, porque é uma dor que te deixa completamente louca. Então você fala aquilo que vem na tua cabeça, você grita mesmo, você fala na tua língua, fala o inglês junto, e não quer se esforçar pra falar com ninguém. Depois, na fase da educação dos filhos, algumas participantes se posicionaram em relação à importância de uma ou outra língua, por exemplo, colocando a língua inglesa como mais relevante para a vida de seus filhos. Além disso, o sotaque (accent) também foi destacado como algo negativo e a ser evitado. A participante LÍ 11, por exemplo, afirmou que sempre procurou falar em português com as crianças, mas quando queria dar bronca neles eu falava 9 Participante, no momento da pesquisa vivia há 4 anos em Londres. 10 Participante, no momento da pesquisa vivia há 1 ano e 4 meses em Londres. 11 Participante, no momento da pesquisa vivia há 29 anos em Londres.
7 7 em inglês, porque eu sei que é sério e eles iam me levar mais a sério. Já a participante UA 12, casada com um homem britânico, afirmou que deseja que a filha aprenda o inglês antes de qualquer outra língua: Quero que a minha filha fale o inglês perfeito, eu não quero que ela tenha sotaque. Se fosse para escolher entre o português e o inglês, que ela fale o inglês melhor porque foi o inglês que me ajudou a arrumar trabalho. Em relação ao sotaque, a participante A& 13, por exemplo, contou sobre a sua preocupação quanto ao tipo e à qualidade de inglês que seu filho iria aprender na cidade em que ela e o marido, também brasileiro, viviam antes de mudar para Londres: Nós estávamos vivendo em Essex e eu não queria que meu filho tivesse um sotaque de Essex. E esse foi um dos motivos de mudar. Porque eu percebi que aqui o sotaque determina. Aqui, é muito melhor você ter um sotaque estrangeiro do que ter um sotaque de uma área pobre. Sobre o sotaque de áreas pobres, LÍ também fez um comentário ligado à educação de seus filhos: Os meus filhos tiveram bolsa de estudos em escola particular daqui. Era uma escola de classe média alta. Lá tinha um pai solteiro, ele vinha do leste de Londres e falava com um acento cockney 14. Ele sempre reclamava pra mim que as pessoas tinham preconceito com ele porque ele vinha de uma classe trabalhadora, e lá era classe média alta. Apesar de ele ter feito muito dinheiro e ser um homem de sucesso, o acento dele não negava o background, a origem dele. Mas aí eu comentei com ele: Mas eu também, olha o meu acento! Ele falou: Mas você é brasileira, eles gostam. LU 15, por sua vez, relatou como a língua inglesa se transformou num instrumento de exclusão atuante no seio de sua própria família: A minha filha já não falava tanto português, eles já se comunicavam em casa, a minha filha e o pai, em inglês, eu já tava totalmente fora, pra comunicar em português eu tinha que falar não, agora vamos falar em português, porque em inglês eu não consigo me comunicar com vocês. 12 Participante, no momento da pesquisa vivia há 4 anos em Londres. 13 Participante, no momento da pesquisa vivia há 19 anos em Londres. 14 Cockney é um termo da língua inglesa usado para designar as pessoas que vivem em East End, Londres, ou para se referir às pessoas da classe trabalhadora em geral. 15 Participante, no momento da pesquisa vivia há 7 anos em Londres.
8 8 Figura 5. Processo coletivo de feitura de escritas, Na figura acima, uma das participantes cobre o espelho da casa onde o grupo se reuniu para produzir escritas coletivas. A proposta era reúna palavras em inglês que fazem parte da sua história, e ela escreveu: Son, Flight, Job, Pregnant, Country, Married. Acervo pessoal. Sandino (2013) oferece uma noção de história oral nas artes como fonte de elementos e operações que podem criar engajamentos colaborativos nas práticas sociais e relacionais. Nesta pesquisa, vejo as entrevistas e a história oral não apenas como métodos de pesquisa qualitativa, mas como possibilidades de práticas artísticas e investigativas dialógicas que constroem ligações entre a experiência individual e a experiência coletiva. Considerando que um dos pilares da história oral é a narrativa e que o acontecimento narrado pode tornar-se algo já que ao contar suas experiências, o entrevistado transforma aquilo que foi vivenciado em linguagem (ALBERTI, 2004, p. 77), gostaria de, antes de encerrar este artigo, apresentar um dos processos de materialização das narrativas articuladas e compartilhadas durante a entrevista por uma das participantes da pesquisa. Aqui, situo-me no campo das práticas artísticas contemporâneas para, então, reposicionar a noção de linguagem e pensar que este tornar-se algo pode estar diretamente ligado à materialização da narrativa por meio da pesquisa em arte e dos processos artísticos. Sabor da Vida: a narrativa como ingrediente de um doce bilíngue Durante a parte colaborativa da pesquisa, Ane Viana 16 utilizou o seu conhecimento profissional de doceira para criar um doce bilíngue inspirado em suas experiências de deslocamento que havia compartilhado durante a entrevista que concedeu para esta pesquisa. Ane nasceu na Bahia e, antes de mudar para Londres, viveu muitos anos em Portugal, onde também atuou no ramo da culinária. Assim que mudou para Londres, ela descobriu um câncer e, neste momento, a língua inglesa foi um enorme desafio. O seu vocabulário em inglês foi formado também durante as consultas médicas, as sessões de quimioterapia e as investigações 16 A participante consentiu que sua identidade fosse revelada neste artigo.
9 9 que precisou fazer sobre a doença e seus processos. Após conceder a entrevista, continuar a pensar nas relações entre língua e lugar por meio do preenchimento de um diário, e participar das atividades coletivas no espaço convivial criado especialmente para este fim, Ane utilizou seus conhecimentos de doceira para criar um doce bilíngue que levou o nome de Sabor da Vida. Este doce incorpora, no seu formato e na escolha dos ingredientes, as histórias ligadas às rotas de imigração e à busca pela cura da doença de Ane. O doce bilíngue contém ingredientes e simbolismos ligados às línguas portuguesa e inglesa. A língua portuguesa é representada por dois ingredientes: o coco, ligado ao Brasil e à Bahia, e o doce de ovos, que representa Portugal. Em relação ao formato escolhido, Ane explica que o coco envolve o doce de ovos, pois simboliza o abraço brasileiro caloroso. No topo, o doce é coroado com uma noz pincelada em dourado. Ane explica que o brilho e a coroa simbolizam não só o glamour de Londres, mas também um presente que recebeu de um amigo, no formato de uma noz, que simbolizava a cura para a sua doença (Figura 6). No nosso espaço convivial destinado às escritas coletivas, Ane preparou uma porção de doces para serem compartilhados com as pessoas que porventura viessem a visitar o nosso espaço convivial. Durante os dias em que habitamos este espaço, produzimos um vídeo sobre o processo de criação do doce 17. Figura 6. Sabor da Vida, doce bilíngue, Ane Viana, Figura 7. Ane Viana, relato sobre a feitura do doce bilíngue Sabor da Vida,
10 10 Considerações Finais Neste artigo, apresentei alguns dados sobre a comunidade Latino-Americana no Reino Unido. Eles indicam que as dificuldades com a língua inglesa são significativas e impactam a vida de uma parcela considerável de indivíduos desta comunidade. Foi possível observar também que o número de mulheres é sensivelmente maior que o número de homens. Portanto, é possível afirmar o caráter feminino deste movimento i/migratório e reafirmar a relevância de pesquisas que investiguem especificidades das experiências de mulheres imigrantes. Ao me debruçar sobre o tema língua e lugar por meio de uma pesquisa de doutorado com base nas artes visuais e em diálogo com os campos da geografia feminista, da autobiografia e dos estudos decoloniais, percebi especificidades na experiência de mulheres brasileiras imigrantes em Londres e me detive, neste artigo, nas narrativas sobre a língua inglesa e a maternidade. Ao ouvir as participantes constata-se que existem peculiaridades de gênero na experiência i/migratória que devem ser observadas e estudadas mais a fundo. Durante os processos de pesquisa, observei que a história oral pode abrir espaços para engajamentos dialógicos e colaborativos que permitem expandir as formas de acessar e lidar com dados coletados. Ao incorporá-los aos processos artísticos colaborativos, ou seja, processos vividos tanto pela pesquisadora quanto pelas participantes da pesquisa, ampliam-se as formas de engajamento com o assunto estudado bem como os resultados obtidos, uma vez que alcançam lugares que a história oral tradicional não alcança. Como exemplo e reflexão final, compartilhei o processo de criação do doce bilíngue, de autoria de Ane Viana, uma das participantes da pesquisa. Concluo, portanto, que a história oral pode funcionar como fonte de materiais (as narrativas) e de relações sociais (os espaços dialógicos e as configurações de grupo) para que, um vez articulados, expandam as formas de acesso às histórias de vida por meio de materialidades não esperadas. No caso do doce bilíngue, o acesso se deu em duas vidas: da boca para fora, momento em ouvimos as histórias de Ane Viana, e da boca para dentro, quando pudemos degustar o abraço brasileiro que envolve o sabor português, ambos coroados pelo glamour londrino que, antes disso, significa uma cura, simboliza o Sabor da Vida. Referências AFONSO, Manoela dos Anjos. Language and place in the life of Brazilian women in London: writing life narratives through art practice. 250 f. Tese (PhD) - Chelsea College of Arts, University of the Arts London, 2016.
11 11 ALBERTI, Verena. Ouvir contar: textos em história oral. 1ª ed. 4ª reimpressão. Rio de Janeiro: Editora FGV, ANDREWS, Molly; SQUIRE, Corinne; TAMBOUKOU, Maria. Eds. Doing narrative research, 2ª ed. London: Sage, EVANS, Yara; TONHATI, Tânia; SOUZA, Ana. Imigrantes brasileiras pelo mundo London: Queen Mary, University of London, HELGUERA, Pablo. Education for socially engaged art: a materials and techniques handbook. New York: Jorge Pinto Books, KESTER, Grant. H. Conversation pieces: community + communication in modern art. London: University of California Press, KESTER, Grant. H. The one and the many: contemporary collaborative art in a global context. London: Duke University Press, McLLWAINE, Cathy; BUNGE, Diego. Towards visibility: the Latin American community in London. London: Trust for London, MIGNOLO, Walter. Epistemic disobedience and the decolonial option: a manifesto. In: Transmodernity, 1(2), 2011, pp REY, Sandra. Da prática à teoria: três instâncias metodológicas sobre a pesquisa em Poéticas Visuais. In: Porto Arte, v. 7, n. 13, PortoAlegre, 1996, pp RODRIGUES, Manoela dos Anjos Afonso. Autobiogeografia como metodologia decolonial. In: Anais do 26º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, ANPAP, Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 2017, pp SANDINO, Linda. Oral história in and about art, craft, and design In: SANDINO, Linda; PARTINGTON, Matthew. Oral history in the visual arts. London: Bloomsbury, 2013, pp SULLIVAN, Graeme. Art practice as research: inquiry in visual arts. London: Sage, SQUIRE, Corinne. From experience-centred to socioculturally-oriented approaches to narrative In: ANDREWS, Molly; SQUIRE, Corinne; TAMBOUKOU, Maria. (eds.) Doing narrative research, 2ª ed. London: Sage, 2013, pp
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