Lições preliminares. Capítulo I
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- Ângelo Candal Lisboa
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2 Lições preliminares Capítulo I Lições preliminares Sumário 1. Introdução 2. Proteção integral e absoluta prioridade 3. Crianças e adolescentes são sujeitos de direito 4. Conceito de criança e de adolescente 5. Aplicação do Estatuto a quem já completou a maioridade 6. Interpretação do Estatuto 7. Competência legislativa. 1. INTRODUÇÃO Na esteira do movimento constitucionalista moderno, denominado de pós-positivismo, o estudo sobre qualquer tema jurídico deve ter início pela observação de seu regramento a partir da Constituição da República. Em relação ao direito da criança e do adolescente, não é diferente. O artigo 227 da nossa Lei Maior estabelece como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão A expressão-chave da previsão constitucional é a absoluta prioridade que deve ser dada à criança e ao adolescente e também ao jovem. A Lei nº 8.069/90, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente, materializa o comando constitucional ao disciplinar largamente os direitos e deveres infanto-juvenis. O Estatuto substituiu o antigo Código de Menores, Lei nº 6.697/79, cuja incidência era voltada precipuamente ao menor em situação de irregular. Crianças e adolescentes eram vistos como objeto de tutela à luz daquele regramento. Durante todo este período a cultura da 23
3 Guilherme Freire de Melo Barros internação, para carentes ou delinquentes foi a tônica. A segregação era vista, na maioria dos casos, como a única solução. 1 Antes mesmo da promulgação da Constituição cidadã e da promulgação da Lei nº 8.069/90, já se falava na comunidade internacional sobre a necessidade de proteção especial ao ser humano nas primeiras etapas de sua vida, infância e juventude. É o que indica Munir Cury: A inspiração de reconhecer proteção especial para a criança e o adolescente não é nova. Já a Declaração de Genebra de 1924 determinava a necessidade de proporcionar à criança uma proteção especial ; da mesma forma que a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (Paris, 1948) apelava ao direito a cuidados e assistência especiais ; na mesma orientação, a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (Pacto de São José, 1969) alinhavava, em seu art. 19: Toda criança tem direito às medidas de proteção que na condução de menor requer, por parte da família, da sociedade e do Estado. 2 Percebe-se que o Código de Menores de há muito já estava em dissonância com a compreensão jurídica e social sobre a forma de tratamento da peculiar situação de crianças e adolescentes. A Constituição da República claramente trilha novo rumo ao mencionar que a infância e a juventude têm de ser tratadas com absoluta prioridade. A mudança de paradigma da nova Constituição já importava, por si só, a impossibilidade de se recepcionar boa parte das regras do Código de Menores. Nesse contexto moderno, foi necessário editar novo diploma legal no plano infraconstitucional, o Estatuto da Criança e do Adolescente. Com visão mais humana, a Lei nº 8.069/90 estabelece já em seu artigo 1º: Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. 1. AMIN, Andréa Rodrigues. In: MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. (coord.) Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. 4ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p CURY, Munir (coord.). Estatuto da criança e do adolescente comentado: comentários jurídicos e sociais. 10ª edição. São Paulo: Malheiros, 2010, p
4 Lições preliminares Assim, sempre com base forte nos princípios constitucionais, o Estatuto da Criança e do Adolescente é o principal diploma legal no que se refere à tutela dos direitos infanto-juvenis. Crianças e adolescente hoje são sujeitos de direito. Sobre a nomeação da Lei nº 8.069/90 como Estatuto da Criança e do Adolescente, Andrea Rodrigues Amin explica: O termo estatuto foi de todo próprio, porque traduz o conjunto de direitos fundamentais indispensáveis à formação integral de crianças e adolescentes, mas longe está de ser apenas uma lei que se limita a enunciar regras de direito material. Trata-se de um verdadeiro microssistema que cuida de todo o arcabouço necessário para se efetivar o ditame constitucional de ampla tutela do público infanto-juvenil. É norma especial com extenso campo de abrangência, enumerando regras processuais, instituindo tipos penais, estabelecendo normas de direito administrativo, princípios de interpretação, política legislativa, em suma, todo o instrumental necessário e indispensável para efetivar a norma constitucional PROTEÇÃO INTEGRAL E ABSOLUTA PRIORIDADE O Estatuto da Criança e do Adolescente é formado por um conjunto de princípios e regras que regem diversos aspectos da vida, desde o nascimento até a maioridade. Toda sua sistemática se ampara no princípio da proteção integral (art. 1º). A Lei tem o objetivo de tutelar a criança e o adolescente de forma ampla, não se limitando apenas a tratar de medidas repressivas contra seus atos infracionais. Pelo contrário, o Estatuto dispõe sobre direitos infanto-juvenis, formas de auxiliar sua família, tipificação de crimes praticados contra crianças e adolescentes, infrações administrativas, tutela coletiva etc. Enfim, por proteção integral deve-se compreender o conjunto amplo de mecanismos jurídicos voltados à tutela da criança e do adolescente. 3. AMIN, Andrea Rodrigues. In: MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. op. cit., p
5 GUiLHerme Freire De melo BarrOs Por isso, o Estatuto deve ser interpretado e aplicado com os olhos voltados para os fins sociais a que se dirige, com observância de que crianças e adolescente são pessoas em desenvolvimento, a quem deve ser dado tratamento especial (art. 6 ). A doutrina da proteção integral guarda ligação com o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. Esse postulado traduz a ideia de que, na análise do caso concreto, os aplicadores do direito advogado, defensor público, promotor de justiça e juiz devem buscar a solução que proporcione o maior benefício possível para a criança ou adolescente. No estudo da colocação em família substituta, o princípio do melhor interesse se faz presente de forma marcante. Proteção integral conjunto de mecanismos jurídicos voltados à tutela da criança e do adolescente O caput do artigo 4º do Estatuto é cópia da primeira parte do artigo 227 da Constituição da República, em sua redação original, antes das alterações implementadas pela EC nº 65/2010. Tanto lá, como aqui, são enumerados alguns dos direitos que cabem a crianças e adolescentes, de modo meramente exemplificativo. A expressão-chave desse dispositivo é a absoluta prioridade. Trata-se de dever que recai sobre a família e o Poder Público de priorizar o atendimento dos direitos de crianças e adolescentes. Inclusive, o parágrafo único do artigo 4º destrincha o conceito de prioridade no âmbito do Estatuto. De acordo com esse dispositivo, a garantia de prioridade compreende: (i) primazia de receber socorro; (ii) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; (iii) preferência na formulação e execução de políticas públicas; e (iv) destinação privilegiada de recursos públicos. Constituição Estatuto da Criança Absoluta prioridade da República + = e do Adolescente e proteção integral 26
6 Lições preliminares `` Como esse assunto foi cobrado em concurso? (Magistratura-AC 2012 Cespe) No que tange aos princípios gerais orientadores do ECA, assinale a opção correta. a) O princípio da prioridade absoluta não pode ser interpretado de forma isolada, devendo ser interpretado de forma integrada aos demais sistemas de defesa da sociedade. Dessa forma, a decisão do administrador público entre a construção de uma creche e a de um abrigo para idosos, ambos necessários, deverá recair sobre a segunda, dada a prevalência da lei mais recente, no caso, o Estatuto do Idoso. b) Buscando efetivar o princípio da prioridade absoluta, o legislador incluiu no ECA um rol taxativo de preceitos a serem seguidos. Gabarito: os itens estão errados. `` QUESTÃO DISCURSIVA (MP-PR 2008) (máximo de 25 linhas). Discorra sobre a doutrina da proteção integral. Fundamentos para resposta: as lições trazidas ao longo deste item dão bom suporte ao candidato para elaboração da resposta. (MP-PR 2008) (máximo de 25 linhas). Discorra sobre o princípio da prioridade absoluta a favor da infância e juventude. Fundamentos para resposta: as lições trazidas ao longo deste item dão bom suporte ao candidato para elaboração da resposta. 3. CRIANÇAS E ADOLESCENTES SÃO SUJEITOS DE DIREITO O artigo 5º do Estatuto estabelece que: Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. O dispositivo guarda relação com a parte final do artigo 227 da Constituição da República. Tais comportamentos proibidos não se referem apenas aos pais, mas a quaisquer pessoas que tenham contato com a criança ou o adolescente. A conduta negligente, por exemplo, pode ser praticada por um guardião ou alguém que tenha a criança ou adolescente sob seus cuidados em determinada situação. A discriminação pode ter por alvo motivos de cor, religião, origem 27
7 Guilherme Freire de Melo Barros etc. O artigo 5º busca enumerar de forma ampla qualquer conduta que possa violar os direitos da criança e do adolescente, sendo certo que o Estatuto prevê sanções de natureza civil (ex: suspensão e perda do poder familiar), penal e administrativa o Título VII, do Livro II dispõe sobre crimes e infrações administrativas relacionadas a crianças e adolescentes. O Código de Menores tratava crianças e adolescentes como objeto de proteção. A doutrina moderna dá outra conotação para a questão e passa a se referir à criança e ao adolescente como sujeitos de direito. O objetivo é realmente deixar claro que há direitos a respeitar e que toda a sociedade pais, responsáveis e Poder Público deve zelar por eles. Código de Menores X Estatuto da Criança e do Adolescente Tutelava apenas o menor em situação irregular O menor era visto como objeto de tutela Dá ampla proteção à criança e ao adolescente Criança e adolescente são sujeitos de direitos 4. CONCEITO DE CRIANÇA E DE ADOLESCENTE O Estatuto estabelece no art. 2º uma importante divisão conceitual, com implicações práticas relevantes. Considera-se criança a pessoa com até 12 (doze) anos incompletos, ou seja, aquele que ainda não completou seus doze anos. Por sua vez, adolescente é aquele que conta 12 (doze) anos completos e 18 anos incompletos. Ao completar 18 anos, a pessoa deixa de ser considerada adolescente e alcança a maioridade civil (art. 5º do Código Civil). O critério adotado pelo legislador é puramente cronológico, sem adentrar em distinções biológicas ou psicológicas acerca do atingimento da puberdade ou do amadurecimento da pessoa. A distinção entre criança e adolescente tem importância, por exemplo, no que tange às medidas aplicáveis à prática de ato infracional. À criança somente pode ser aplicada medida de proteção (art. 105), e não medida socioeducativa estas aplicáveis aos adolescentes. Idade De 0 a 12 anos incompletos De 12 completos e 18 anos incompletos A partir de 18 anos completos Nomen Iuris Criança Adolescente Maior 28
8 Lições preliminares 5. APLICAÇÃO DO ESTATUTO A QUEM JÁ COMPLETOU A MAIORIDADE Dispõe o parágrafo único do art. 2 que o Estatuto é aplicável excepcionalmente às pessoas entre 18 e 21 anos de idade. Isso se verifica tanto no campo infracional, quanto na área cível. Na apuração de ato infracional, por exemplo, ainda que o adolescente tenha alcançado a maioridade, o processo judicial se desenvolve no âmbito da Justiça da Infância e Juventude. Vale dizer, aquele que já completou 18 anos ainda está sujeito à imposição de medidas socioeducativas e de proteção. A aplicação do Estatuto somente cessa quando o jovem completa 21 anos (art. 121, 5º). No âmbito cível, verifica-se que a adoção pode ser pleiteada no âmbito da Justiça da Infância e Juventude, mesmo que o adotando já tenha completado 18 anos, nos casos em que já se encontre sob a guarda ou a tutela dos adotantes (art. 40). Portanto, deve ficar claro que o Estatuto fixa os conceitos de criança e adolescente e tem por objetivo tutelá-los, mas é possível sua aplicação em situações nas quais o adolescente já tenha atingido a maioridade civil. O parágrafo único do artigo 2º continua, pois, em vigor. 6. INTERPRETAÇÃO DO ESTATUTO O artigo 6º estabelece que: Na interpretação desta Lei levar- -se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento. A previsão de que a interpretação do Estatuto deve levar em conta os fins sociais está em perfeita harmonia com o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil. Luís Roberto Barros explica: As normas devem ser aplicadas atendendo, fundamentalmente, ao seu espírito e à sua finalidade. Chama-se teleológico o método interpretativo que procura revelar o fim da norma, o valor ou bem jurídico visado pelo ordenamento com a edição de dado preceito BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2003, p
9 Guilherme Freire de Melo Barros De fato, o aplicador do direito deve sempre se pautar pelo objetivo maior de tutela da norma jurídica. No caso do Estatuto da Criança e do Adolescente, por óbvio, quer-se tutelar os direitos infanto-juvenis, de modo que o juiz, o promotor de justiça, o defensor público, o advogado etc., enfim, todos devem extrair da norma o maior conteúdo protetivo possível para a criança e o adolescente. A parte final do dispositivo traz uma expressão-chave que é a de que a criança ou o adolescente é pessoa em desenvolvimento, o que significa dizer que a aplicação de seu conteúdo deve ser diferente daquela ordinária prevista para adultos. É que a infância e a adolescência são os períodos de maiores transformações do ser humano, é o momento em que se forma seu caráter, se dá a educação básica, a alfabetização; é o período em que a saúde é mais frágil (notadamente a da criança). É dizer, esse período inicial da vida é o que permitirá a formação de um adulto saudável, educado e ético, a permitir a estruturação de uma sociedade mais justa e humana. Em suma, a diretriz a ser seguida na interpretação do Estatuto deve levar em conta os fins sociais ligados à proteção integral de crianças e adolescentes, que são seres humanos com características especiais, são pessoas em desenvolvimento. 7. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA Em relação à proteção à infância e juventude, a competência legislativa é concorrente e recai sobre a União, os Estados e o Distrito Federal, conforme determina o art. 24, inciso XV, da Constituição da República. `` Como esse assunto foi cobrado em concurso? (Magistratura-AC 2012 Cespe) No que tange aos princípios gerais orientadores do ECA, assinale a opção correta. d) De acordo com o princípio da centralização, inovação promovida pelo ECA, a União tem competência para criar normas gerais e específicas de atendimento a crianças e adolescentes para sanar omissão dos governos estaduais e municipais. Gabarito: o item está errado. 30
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